quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O Natal de cada um de nós.






Feliz Natal.

Agora, o Natal tem outra cor e outro cheiro e nós olhamos para os presentes com o olhar de quem adivinhou os gostos das crianças. Agora, as crianças são os nossos filhos e quando passam o natal, aqui em casa, só pensamos se fizemos bem em oferecer aquele livro, apesar das negativas e não tem importância se o bacalhau tinha menos batatas e pouca couve. Isso vale o gosto e o prazer que da ceia pudemos experimentar. A minha mãe já foi descansar e aguentou as batatas mal cozidas e as sobremesas que não foram preparadas pelo seu rigor de muitos anos a fabricar o natal de todos os vinte e tal que nos éramos, antes dos casamentos que se desmembraram, ao longo da história da nossa família.

(Como no início da Ana Karenina.)
 “Filha, podes deitar fora o pano em que enrolámos o peru, era um pano já muito usado, limpo, mas muito usado. Deita-o fora, estamos a ir para a idade e mais pano, menos pano, só vale o que vale e um pano velho e limpo é só um pano velho. Estamos bem, filha, tens de ter mais paciência e pensar que amanhã estaremos a almoçar todos juntos. Já passei o natal no Equador, em Sevilha, em Paris, em Maputo (não se chamava assim), em Berlim, na Ilha de Moçambique, não tínhamos peru, mas eu também não tinha netos, e tu és uma guerreira. Deixa o natal em paz”. A minha mãe tem tanta razão. Tanta razão. As razões dela parecem pertencer a outra dimensão, a outro mundo. Os miúdos são malcriados e acham que o universo se uniu para os tramar… Tivesse eu irmãs e acharia que poderíamos fazer o pudim indiano de que o meu pai gosta e as filhós de sempre, pôr a toalha bordada a ponto de cruz e o centro mesa da Tia Elisa, mas eu sou filha única, a avó já não anda e eu não sei em que gaveta essas coisas estão guardadas. Fico até mais tarde a escrever este texto, porque o meu pai quer ler o jornal, o peru está no forno, o menino mais velho está ver televisão, a noite é muito longa e os “velhos”, desculpa mamã, dormem cada vez menos. Hoje, abrimos uma boa garrafa de vinho e gostámos de conversar sobre isso, eu e o meu pai, ainda temos muito assunto e todos gostam de nos ouvir discutir. Os miúdos adoram o avô e este é o natal que eu lhes posso dar. Eles gostam, lamentam a tia  madrinha que ficou na Ilha. Seríamos mais família à mesa e as crianças passariam o dia rir, mas não é possível. As famílias aumentam e partem para longe e as viagens de avião, só se pode vir de avião, são muito caras. “As vossas prendas estão guardadas e o Tomaz lerá A Odisseia, quando tiver de ser.” Feliz Natal para todos. A minha mãe adormeceu. Acho que o peru já está assado.

(Sabiam que um peru de seis quilogramas leva seis hora a assar?)

domingo, 22 de dezembro de 2013

Uma árvore de natal que não é minha.




Quero
neste Natal
armar uma árvore dentro de meu coração
e nela pendurar, ao invés de presentes,
o nome de todos os meus amigos.


Os amigos de longe e de perto,
os antigos e recentes,
os que vejo todos os dias
e os que raramente encontro.


Os sempre lembrados e
os que, às vezes,
ficam esquecidos.


Os constantes e os intermitentes,
os das horas difíceis
e os das horas alegres.


Os que, sem querer,
eu magoei ou,
sem querer
me magoaram.


Aqueles a quem conheço profundamente
e aqueles que me são conhecidas
 as aparências.


Os que pouco me devem
e aqueles a quem devo muito.


Meus amigos jovens,
 

Meus amigos homens feitos
 

Meus amigos humildes
e meus amigos importantes.


Os nomes de todos os que  passaram
pela  minha vida.


Os que me estimam e admiram
sem eu saber
e os que amo
e estimo sem lhes dar a entender.


Quero neste Natal armar uma árvore de raízes muito profundas
para que os seus  seus nomes
 nunca mais
 sejam arrancados.


Uma árvore de ramos muito extensos para que os novos nomes,
vindos de todas as partes,
venham juntar-se
aos  já existentes.


Uma árvore de sombra muito agradável
Para que a  nossa amizade,
seja um momento
de repouso

no meio
das lutas
da vida.


Não sei quem escreveu este texto, nem sei se corresponde ipsis verbis ao original, nada sei deste texto, no entanto, é vosso a partir de agora. Desculpem a minha falta de originalidade.

FELIZ NATAL

  

(Voltarei com o coração mais quente e os dedos cheios de açúcar.)

 

domingo, 15 de dezembro de 2013

In a relationship com banda sonora ou as andanças do facebuque.





In a relationship com banda sonora ou as andanças do feicebuque

Isto estava uma tristeza de fazer chorar as pedrinhas da calçada, umas páginas do feicebuque que eram uma lástima: nem uma polémica, nem uma discussão ou guerreia, ninguém a dizer mal de nenhum escritor português, nenhuma crítica aos jogadores de futebol, nenhum treinador enxovalhado, nenhum insulto, nenhuma descoberta que mudasse o rumo da história, nenhuma fotografia dos jantares de natal “lá do escritório”, nenhumas raparigas abraçadas a dizer “love you Carolina”, nenhum, pai natal a fazer de diretor de empresa, nenhuma mesinha com garrafinhas de Pepsi, digo Coca-Cola, nenhum professor de filosofia a bater na mulher, nenhuma praia paradisíaca de trikini, nenhuma mesa de natal cheia de perus recheados e nem um coelhinho vestido de político sério. Nada. Uma pasmaceira. Frases de poetas para cima, frases de gurus para baixo, sonhos salteados em canela e açúcar, muitas frases de filmes carregados de ensinamentos inéditos, receitas e anedotas sobre a crise, a prima da crise, a tia da crise - um feicebuque que não se podia, não se aguentava tanta ‘mesmice’ decorada numa página ou outra com uma travessa de arroz de pato, uma açordazinha de bacalhau, umas ondinhas de  ovos moles. E um dia de sol lá fora! Tanta coisa que deveria estar a acontecer, (se calhar, estavam todos a ler O Expresso!). Felicidade. Alegria, num céu azul, só possível nestes dias de dezembro e frio. E o feicebuque com os mesmos perfis de sempre.“ Isto está mesmo a pedir um casamento, umas bodas de ouro, um namoro escaldante, uma cena à Sol de Inverno”. E, pronto, escrevi  no meu mural: eu-fulana-de-tal in a relationship. Bem! Eu nem queria acreditar - passados alguns minutos comecei a receber likes, mensagens com felicitações,  smiles,  corações a piscar, estrelas com lacinhos, polegares azuis e enormes em mensagens privadas, polegares de “amigo” que eu não sabia tão preocupados com a  minha vida afetiva,  sms a perguntar quem era o felizardo. ”Como é que te acontece uma coisa destas e não me dizes nada? Ai! Mulher que contente que fiquei! Já estava na hora das coisas boas começarem a acontecer!”. “ O teu pai natal chegou mais cedo”. Confortada com tantas manifestações de calor e fraternidade, dei comigo a pensar que quem tem amigos no feicebuque tem tudo! Todos os meus amigos querem que eu me “case” e todos precisamos de ver, ‘claramente visto’ e escancarada a vida dos outros. Surpreendente, no entanto, a facilidade com que tiramos conclusões, ajuizamos e lemos o que Não está escrito nas páginas do feicebuque. Agradeço com o coração todo o vosso carinho e interesse pela minha vida amorosa, contudo, de momento, a minha única e feliz relação amorosa é com a Minha vida. Continuem a likar e a acompanhar os episódios seguintes, eu e a Vida agradecemos. Por enquanto é tudo, desculpem-me, mas “aqui não há coisa nenhuma”.

Ainda estamos em muito boa idade, não é verdade?

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Já escolheu? Temos também mini-pratos mais em conta.Trago já a lista dos combinados, minha senhora.





Já escolheu? Temos também mini-pratos, preços mais em conta.
Trago já a lista dos combinados, minha senhora.

Teria preferido ficar deitada na areia, a teu lado, a ver o ir e vir das ondas, as tuas proezas de bruços, ou a tua capacidade para me convenceres que o horizonte é  a tua pessoa ou as vossas pessoas. Teria preferido que não me tivesses perguntado pela posição das almofadas, ou pelo tempero da sopa. Teria preferido que nem sequer te tivesses atravessado no meu caminho e teria preferido que as nossas solidões alguma vez se tivessem, de novo, encontrado. Teria, se me tivessem dado a hipótese de escolher, preferido uma vida mais arrumadinha, organizada em gavetinhas, com grandes tratados com notas de rodapé e até teria começado a roer as unhas, teria deitado fora os meus vernizes atitude chique e vermelho tango, tudo isso eu teria trocado por um dia mais tranquilo, mais simplório e preenchido entre enxotar uns gatos vadios e o tempero picante do caldo de peixe, ou ainda, por um jantar à volta de um chili regado com Fernando Pessoa e a metafísica de uma discussão sobre grandes Arquitetos do Universo, a Existência de Deus e a necessidade de se escrever O tal verdadeiro e único livro. A Função da Arte na Sociedade e as Cem Soluções para sair da Crise. Teria deitado fora o meu orgulho, rapado para fora do prato algumas migalhas de arrogância e, até, teria começado a ir ao futebol se alguém mo tivesse pedido. Teria trocado os dias de sol com frio, de que tanto gosto, por uma semana inteirinha de chuvas torrenciais, ter-te-ia passado as camisas a ferro e vincado as calças cinzentas do fato completo, acordaria todos os dias às seis da manhã e ficaria uns quantos meses sem comprar botas, tanto que eu teria feito, se me tivessem  permitido escolher – Skip ou Persil; pepperoni ou extra cheese; papel de folha dupla, ou algodão em rama. Teriam sido escolhas, decisões conscientes, uma vida à la carte como um catálogo de tintas Robbialac, pois teria. Pois teria. Neste momento eu diria uma visão mais romântica do mundo e, com um bocadinho de esforço, o Pai Natal voltaria a instalar-se com maiúscula, ali, naquele canto da sala que tem a tomada para ligar as luzes, mas não… As prateleiras estavam todas desarrumadas, os saldos começaram mais cedo e, Quem lá está, se lá estiver Alguém, deu-me  a roupa conforme o frio, eu tiritava, nem dei conta, e o copo que para mim está sempre meio-cheio, entornou-se. Agora, desejo que o ano acabe, saio de casa sempre com a cama feita e faço os possíveis por ter saldo positivo até ao fim do mês. Apenas alguns exemplos. Agora, sem ter escolhido, nem a marca dos caldos Knorr que já não uso, nem a melhor forma de organizar o que ainda está para vir, olho para o mundo e penso que as nossas escolhas são simples conjugações de ADN e a cor das camisolas, a condizer com a saia, será o mais perto de fazermos o que nos apetece. Carpe diem? Não sei, porque se o dia não estiver de feição…. nem a Lídia se sentará connosco à beira-rio.

 

domingo, 8 de dezembro de 2013

Postal Ilustrado.

Cacela Velha / Fábrica
(Fotografia de Pedro Afonso Pereira, dezembro de 2013)


Postal  ilustrado.

Estava em quarto crescente a lua a subir. Na Ria Formosa. Nunca vimos a lua juntos na Ria Formosa, porque nunca vimos a lua. Juntos. Ontem brilhava na água. Seguiu a meu lado. Estava uma fria noite de dezembro e lembrei-me de outra noite e de outros dias, de outras fases da lua de dezembro e de outros meses, porque o tempo é apenas uma medida e o último dezembro foi apenas o último de um ano que acabou. Como as fases da lua. E, as vidas das pessoas. Estão cheias de sonhos, promessas, perdões e recomeços. Não sei de que cor teriam sido os dias se nos tivéssemos permitido ver a lua. Juntos. Não sei e tu também não, porque no outro lado do mar está muito calor e tu continuas a enxotar os gatos. E, que importância tem tudo isto, agora? Estas linhas são só para te dizer que há muitos dias de dezembro carregados de luz, aqui ao sul. O Guadiana brilhou o dia todo, mas as tardes arrefecem, quando o sol se põe e a lua insiste em aparecer. Acendem-se as estrelas e os sinos que reclamam a chegada do pai natal e na humidade dos vidros das janelas, se quisesse, poderia escrever o teu nome dentro de um coração. Com a ponta dos dedos. Procurarei o telhado da tua casa, o fumo na chaminé, talvez ainda me recorde dos traços gosseiros do teu rosto de moço. Talvez te acene, talvez. No regresso. Quando o sol mudar a cor da água da Ria. Não respondas, por favor. Já não são necessárias  palavras. O tempo é apenas uma medida, não é verdade?

As ruas estão muito coloridas, mas o chão está molhado, se não tivermos cuidado, podemos escorregar.

Um abraço.  


 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Insípido incolor






Quanto ao insípido incolor, respondo-te assim: não há fotografia, porque não quis tirar fotografia com a artista, nunca gostei de  estive neste concerto e tirei um retrato para mostrar aos meus netos, por isso, não tenho uma fotografia para  alegrar a alegria de  ouvir e cantar We Used Call It Love. A noite estava muito fria e a boina era preta, basca, comprada, talvez, numa dessas Parfois que por aí crescem, o vestido, o meu, era muito quentinho de lã preta, o casaco, inócuo, de pele sintética, comprado num saldo, há uns quantos invernos. O vestido da cantora também era preto, mas tinha vidrinhos cor-de-rosa. Vestido de cantora, porque assim tinha de ser. As outras pessoas deveriam estar vestidas como pessoas que vão a concertos, numa noite fria de dezembro. Não registei nada de muito elegante, nem muito colorido. Uma ou outra saia encarnada, écharpes às flores, lábios rouge-passion e pouco mais. Mas acrescento-te um pied de poule, garrido, sentado a meu lado. Suspirou por um descafeinado falta imperdoável num sala de espetáculos desta dimensão, eu sem o descafeinado passo muito mal, e os rapazes foram muito antipáticos, mesmo boçais, e numa sala destas, amanhã vou mandar um mail, eu conheço a cantora e a mãe. Já estou aposentada e venho a alguns concertos. Nasci no estrangeiro e não estou habituada a portugueses mal-educados, agora à música venho mesmo, porque me oferecem os bilhetes, que esta rapariguinha também é minha conhecida. Olhe, venho já, vou ali cumprimentar um outro músico que conheço. Quando olhei, vi o pied de poule em bicos de pés, o tal músico conhecido pareceu-me surpreendido. Já não se lembra de mim. Quando quis beber o descafeinado que não tinham, veja lá, numa sala destas, encontrei uma amiga cantora que, também, não me reconheceu, sabe?! Já é a terceira vez esta noite. Não se lembram de mim. Pois claro, eu era morena e, agora, por causa dos brancos, estou loura, mas conheço-os a todos. O pied de poule de metro e meio, cabelos louros aos caracóis, óculos na ponta do nariz e um insistente colorido Maderas do Oriente, que me lembro de ver no psiché da minha tia Elisa, insistiu em cantar durante todo o concerto. Um bocado de cinzento e irritante pied de poule! Fiquei a pensar no tal mail. Na verdade, a falha do descafeinado caiu-me muito mal. Assim, de momento, não me lembro de mais nenhuma cor. Não sei, minha querida, se era a esta cor insípida de que falavas. Além das cores de Lovely Difficult, não sei. Não ouvi mais nada. Ah! Ainda, a propósito de cores, tenho na ponta dos dedos uma atitude chique, umas unhas pardas, brilhantes, entre o castanho taupe e o cinzento-escuro, muito moderno que fica bem com a roupa mais casual, ou mais de festa, se está vestida de preto, a cor atitude chique fica mais brilhante, já com as cores mais claras faz contraste. É uma questão de atitude, verdade? Quem assim tão bem me aconselha é a minha Rosalva de Minas Gerais, que trabalha com unhas e atitude há mais de vinte anos.

Era este o insípido incolor? 

                                                                                                              

Intervalo




Afinal, escolhi o verniz atitude chique para pintar as unhas, o vestido com roda e o casaco de pele que imita a outra e aquece o corpo. A boina a compor um calor vindo do outro lado do mar. Atitude era o passo rápido e a certeza que iria ficar com os olhos a brilhar. Às nove em ponto. Era, apenas, um intervalo, e então se "We Used Call It Love"?!

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Um dia atrás do outro.




Um dia atrás do outro.

Quatro gramáticas, dois dicionários, prontuários, Os Lusíadas e os Contos de Eça de Queiroz. Uma mesa arrumada e os  papéis para reciclar. Uma dose de filetes com arroz de cenoura, uma máquina de loiça, a gaveta  das  meias sem par, um miúdo com um recado na caderneta, a divisão e classificação de orações, um poema épico com dez cantos e a estrutura do texto argumentativo. A panela de pressão lavada, a mochila e os cadernos de folhas, já, soltas, um grito abafado, e depois os outros gritos. A teimosia cheira a pele com acne. O passe já não tem saldo. O frio que veio da cozinha, o micro-ondas a espirrar gordura. A caneta azul que desapareceu no forro da mala. O carteiro que se enganou na porta e tocou duas vezes, um livro de poesia caiu da prateleira. Os rissóis de leitão em concorrência desleal com o arroz de cenoura, o cesto cheio de roupa suja e o aspirador que não aspira. Os inquéritos de mercado, a aguarela da Gracinda Candeias.  A caixa do CD do Stan Gertz e da Astrud Gilberto desapareceu. O aquecedor parece que não aquece, o telemóvel ficou sem bateria. Uma reunião agendada com a diretora de turma e os ossos de uma amiga a desfazerem-se com o frio. A novela que todos vimos, porque uma das atrizes é cá de casa. A Optimus foi distinguida com o prémio de Escolha do Consumidor. O miúdo mais velho teve um déjà-vu. Os sofistas saem no teste de sexta-feira. O cão do primeiro andar uivou o dia todo, afinal, a Diana Chaves já fez trinta anos e a Multiopticas oferece vauchers.  Há pessoas  corajosas e o curso de poesia faz bem à saúde. A Faculdade de Letras tem as salas mais limpas, mas a livraria da Teresa desapareceu. O frio vai continuar, o pai discute estratégias militares com os filhos. Mandela é um bom rebelde e já li até à página 75. Encontrei os phones pendurados nas costas da cadeira. O FB insiste em exibir a felicidade de vestido preto e olhos pintados.  A areia é branca e o mar azul. No supermercado, as raparigas falavam de sites de encontros para homens e mulheres com mais idade. As análises estão bem, apesar de um valor do Leucograma estar esquisito, ainda sei o nome das dores. A inteligência emocional está a ser estudada por psicólogos do mundo inteiro. Vestiram os pijamas de flanela e foram para a cama ler. O Parlamento Europeu distinguiu Malala Yousafzai com o prémio Sakharov, o ciclone chama-se Cleópatra e o Papa pediu aos fiéis que rezassem. O herói é o Cristiano Ronaldo. A receita do chiffon de chocolate estava no livro de receitas vegetarianas e o frio encolhe-nos os dedos do teclado. Juntar as escovas de dentes é mais importante do que juntar as alianças - as personagens da telenovela têm muita razão e ponto final.

Boa noite e até amanhã.

 

 

sábado, 16 de novembro de 2013

Compor o coração.



 Compor o coração.
Suspirou. Chegou mais para si a roupa e deixou-se ficar. Tinha frio. Não gostava da espera. Não percebia o diálogo, a conversa sem resposta, durante horas, durante o jantar. Quando o jantar. Não percebia. Ou talvez sim, talvez soubesse. Tinha muito frio e as noites eram muito longas. A solidão crescia na roupa, no cheiro da casa, no pó dos livros. Recolhia os bocados e o super-homem espalhados pela casa, esticava a toalha da mesa com a palma das mãos, compunha o prato. Continuava com frio. Todas as noites, a espera. Desfiava o rosário dos remorsos, dentro de si. Instalara-se, a seu lado, uma sombra. Não conhecia o corpo. Pelo silêncio, ainda, ouvia a chave na porta, a pasta atirada para o chão. Sentia o cheiro. Chegavam os passos. Correu tudo bem?, arriscava. Dorme, são assuntos do escritório, trabalho, não te interessam, amanhã também chegarei tarde, dorme. Ouvia os passos afastarem-se. A almofada colada ao coração triste. Aconchegava-se. Ouvia no quarto ao lado o suave respirar. Serenava um momento, continuava com frio. Às vezes, ouvia as gotas da chuva, transparentes, debaixo da janela. Embalavam-na. A chave rodava na fechadura. Fechava os olhos. Uma e outra vez. Uma e outra noite a chuva a cair debaixo da sua janela. Uma e outra noite a olhar através da televisão. O olhar atravessava de um lado ao outro, qualquer coisa que, por momentos, fosse diante dos seus olhos. E, maior, o silêncio. A espera. Acordaria com a mesma certeza dentro de si. E o frio. Ajeitava a figura e fazia-se à estrada. Outro dia a seguir os mesmos caminhos. A mesma noite que demorava a trazer o dia, arrastando a espera. Igual, que se repetia. Queria pensar, um dia, o que sempre fora, talvez.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

"Não contem a vidinha", dizia o O'Neill

(Um homem e uma mulher, Claude Lélouche, 1966)


(“Não contem a vidinha”, dizia o O’Neill. “Não contem a vidinha”.)

 Não contarei a vidinha.

Saiu de casa com um casaco sobre os ombros. O dia não estava frio e, mesmo, se a temperatura baixasse, ela teria sempre o carro para se abrigar. Compôs a gola da camisa, mirou o brilho das botas, respirou fundo e seguiu. Nada a deteria, nem mesmo o cheiro a roupa lavada das suas mãos. Atropelavam-se as ideias,  os sonhos estremeciam dentro de si, à medida que o tempo passava.  Acelerou o passo, esticou os gestos, lembrou-se do dinheiro que guardara na carteira, dos cigarros e do isqueiro, das chaves, do risco a  eye-liner, que nesse dia ficara direito. Subiu a rua. Compôs a saia, as meias tinham sido bem esticadas, o lenço, usava sempre lenços, como adorava lenços, estava a condizer com a cor do casaco, apenas, sobre os ombros. Se se visse, naquele momento, ao espelho, encontraria algum defeito, alguma mancha, um botão descosido. Não, não olharia para o espelho. Ela sabia que poderia estar melhor, mas também sabia que ele não perceberia os defeitos, afinal, há vinte anos que não se encontravam. Continuou a andar, evitava as manchas de gasolina, os buracos da calçada, os caminhos mais estreitos - “Estarei à tua espera, vem depressa!” – dissera-lhe para vir depressa. Há tanto tempo que ninguém lhe exigia pressas. Há tanto tempo que ninguém lhe exigia ser qualquer coisa. Bem, exigir? Exigiam! “Ajuda-me a fazer o trabalho de casa”; “ Vai ao correio pagar esta conta.”; “Preciso do fato azul, para hoje à noite, tenho uma reunião muito importante.”; “ O que é o almoço?” Aquelas exigências eram a sua própria vida. Agora, exigiam-lhe uma pressa diferente,  carregada de cheiro, de promessas e de segredos. Ia. Estava a ir sem medo . Apressou-se. Porquê todo aquele estremecimento?  Pensou  que precisava de arrumar as gavetas da secretária. Era como fazer cópias, na escola primária. Não servia para nada, mas mantinham-na ocupada. As  mãos  cheias  e o pensamento entretido. Longe. Em qualquer sítio. Às vezes, ainda lhe apetecia fazer cópias, por isso, mantinha as gavetas em ordem . Olhou em frente, procurou o número da porta: 52, 54, 56, ele dissera-lhe. “Uma porta azul, número 74”. Ou seria 78? E, se tivesse apontado mal o número? Olhou  para a agenda. Não apontara o número da porta, mas lembrava-se da cor azul da porta. Do nome da rua. Do nome do bairro.” Há lugar para estacionar, não te demores! ” Uma chuva miudinha começou a confundir-se com a sua respiração. Ora chuva. Ora respiração. “Não te demores”, as palavras do homem ajudavam-na a procurar a porta azul.  Olhou para si, o brilho das botas. Sentiu o cheiro que espalhara no corpo. Lembrou-se da moeda que deixara numa mão suja. Porta azul. Porta azul, número 78. Seria aquela? Era azul, a porta. “ Tens de subir umas escadas! Entra devagar. Não te farão perguntas. Sobe até ao 1º andar, estarei à tua espera. A porta estará aberta.” De repente, apeteceu-lhe fugir, descer, a correr, as escadas, voltar para as suas arrumações. Pedir a moeda de volta. Esquecer o brilho das botas. Deixar cair o lenço. Mentir uma razão qualquer. “ Perdi-me no caminho.” “ Fiquei com frio.” “ Perdi as chaves de casa”. Qualquer coisa. Qualquer coisa que a levasse de volta. Que a impedisse de continuar. Tarde demais. A olhar para ela um sorriso, de  mãos abertas, o homem puxou-a para si: “ Entra. Abraça-me. Não, deixa-me olhar para ti. Sempre te imaginei assim. Segura e com as mãos muito frias”. Entraram, abraçados, na penumbra do quarto. Pairava no ar o cheiro e a sombra de encontros anteriores. A chuva, agora, acertava  nos carros que passavam. Nos vidros das janelas. Na cidade que os ignorava. Cinzenta e molhada. Quase fria.  Conversavam. A mulher e o homem. As palavras saltavam de uma frase para outra. Recitaram cumplicidades e ajeitaram os passados. Desculparam-se de nada. Estavam sentados ao lado um do outro. Deram as mãos. Ele compôs-lhe o rosto. Ela pediu-lhe  água. Deixaram que a noite entrasse. Num quarto ao lado, uma mulher gemia. Numa cama  igual.  Ignoraram a mulher e sorriram.

domingo, 10 de novembro de 2013

O Escritório (continuação)



Andrew Wyeth, Open and Closed


O Escritório (continuação)

 Era eu a menina da casa. Nas tardes mais longas, escondia-me no escritório que ficara resguardado do sol, durante a manhã, e sentava-me na cadeira da secretária. As pernas penduradas, a rodar um círculo perfeito, desenhado pelo balanço da minha força naquele engenho de madeira e mola de ferro rangente e gasto. Ao lado da secretária, a janela e uns cortinados transparentes que deixavam entrar a luz do sol, ou da sombra ocupavam metade da parede cor-de-rosa, adivinhava-se o laço encarnado na esquadria, por trás da estante dos livros. Um móvel de madeira brilhante e sedosa, com riscas de vários castanhos, igual à secretária e às cadeiras de braços, duas portas, prateleiras ao meio e três gavetas na parte de baixo. Uns pés pesados e dourados rematavam as linhas direitas e suportavam o peso. Nunca lhe faltou o brilho, nem a limpeza. Não são contas do teu rosário e eu, antes de saber ler, olhava-o de longe, encolhida de medo e timidez, via  os livros de lombadas largas azuis, verdes e castanhas, amparados por umas cabeças assustadoras esculpidas em pau-preto, os bonecos de porcelana, os rostos de crianças dentro de molduras prateadas e as caixas de várias cores, que não me pertenciam. Mas no silêncio que me acompanhava e, sob o olhar atento do menino Jesus, eu atrevia-me, aproximava-me da estante e mexia nas prateleiras que conseguia alcançar, pegava nos livros, sentia o papel rugoso que os forrava, cheirava-os, abria as gavetas sem chave, espalhava as caixas no chão encerado a alfazema. As mãos eram pequeninas, os livros escorregavam, caiam e abriam-se, as caixas perdiam a compostura. Um dia, com um gesto mais rápido e medroso, desfiz uma pastorinha, um patinho branco de bico dourado e o vidro que protegia do pó a cara de uma criança sorridente. Um avô complacente salvou-me de uns açoites e o escritório, depois de varridos os cacos, continuou a pertencer-me, desde que a porta permanecesse aberta. Nos dias seguintes, não saí da cadeira que girava e chiava, observava as paisagens penduradas na parede, do outro lado da secretária, o cinzeiro que combinava com o isqueiro, muito alinhados, em cima da mesa de latão, os dois sofás estofados a brocado grosso de cor indefinida, cor de sujo, e partia para as minhas histórias, sempre a imaginar conversas e pessoas. Os brinquedos da secretária também me acompanhavam. No entanto, a estante, imperturbável, com os seus tesouros, era o meu território proibido. A curiosidade era um tormento, entre uma história inventada e uma piscadela de olho para as prateleiras cheias de livros, eu pensava na maçã envenenada da Branca de Neve e na abóbora da Gata Borralheira. A estante crescia, ocupava o espaço todo, os Reis Magos já não se  mexiam e a tapeçaria deixou de me amedrontar, o mundo  estava, agora, naqueles livros inteiros e quietos, que eu mal podia tocar. Não passaram muitas tardes até eu saltar da cadeira que rodava, para A Guerra e Paz e O Crime do Padre Amaro. Quando aprendi a ler, enrolava-me num daqueles sofás pardos, de orelhas salientes e decifrava os mistérios há tanto tempo, ali, arrumados. Esquecia-me das outras histórias e brinquedos, o tempo passava e sem perceber o escritório ia escurecendo. Ficava suspensa  parágrafos, capítulos inteiros.  Às vezes, da rua por raros e descompassados momentos, ouvia o barulho mais rouco de um carro, a campainha de uma bicicleta, o pregão do amolador, vozes, uma gargalhada, um grito, o ladrar de um cão vadio, o rolar de uma carroça. A casa ficava numa rua sossegada. O escritório era meu, o papel pardo que escondia alguns títulos era o meu único desafio. A maçã e a abóbora. 

(continua) 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Apetecia-me um cigarro.

Pablo Picasso, Em repouso.
 
 
 
 
 

Apetecia-me um cigarro.

Quando se sentou à mesa do café sentiu-se mais calma. O bater lento e repetido da chuva, na janela, devolvera-lha o bater mais certo do coração. Secava as mãos na saia, pediu um café, meio copo de água, lembrou-se que um cigarro saber-lhe-ia bem. Lembrou-se da sombra do fumo do cigarro nas suas mãos. Olhou através da chuva. Olhou através das pessoas.  Entrara para beber um café e dar uma folga aquela aflição. O café estava vazio. Os bolos no balcão enchiam-se de moscas. “Aqui está o seu café, o copo de água, minha senhora. Sessenta cêntimos, se fizer a fineza.” Faria a fineza, moedas certas. Não precisaria de troco. "Muito obrigada e volte sempre”, ela ainda não bebera o café e o empregado já estava a mandá-la embora. Iria. Quando lhe apetecesse. Poderia até nem beber o café, com um pouco de água, como era seu hábito. Poderia. Poderia até nem ter entrado naquele café. Teria escolhido outro. Chovia. Estava quase sem fôlego, precisava de se sentar. Uns minutos, apenas uns minutos. Há horas que deambulava pela cidade, antes de começar a chover, decidira andar. Descer e subir ruas. Olhar a cara das pessoas. Ver-se no rosto dos outros. Olhar-lhes as roupas. Os olhos. Atrasar-se para a solidão. Bebeu o café, soube-lhe mal. Estava frio. Não pediria outro. Ficou sentada mais um bocado, olhou para a rua. O passeio molhado. Gente apressada. Chapéus de plástico cobriam a cabeça das pessoas. Jornais e pastas a proteger algumas carecas. “Vou ficar toda encharcada, não tenho guarda-chuva, perdi o chapéu. A chuva na cara não me fará mal nenhum,” falava sozinha, baixinho. Só ela ouvia. Pouca coisa lhe poderia fazer mal. Faria de conta que estava à espera que parasse de chover para sair do café. Entraram mais pessoas. Um casal de velhos, duas adolescentes, uma senhora mais composta. Se soubessem como o café é mau. "Ainda bem que pediram chá de limão, coca-colas uma água sem gás”. Olhou o relógio. Seis horas em ponto. Quando fossem seis horas e cinco minutos, levantar-se-ia, comporia o lenço colorido dentro da gola, agarraria a mala com as duas mãos e sairia. Estava mais serena. Mais infeliz. Mais triste. Mais só. Ela soube no momento em que ele lhe ligou para se encontrarem, para lhe explicar, mais uma vez, as suas razões, que ele não apareceria. “Quero explicar-te o que sinto por ti. Quero dizer-te o quanto foste e és importante na minha vida. Beberemos um café, um chá. O que tu quiseres”. Foi nesse instante: “O que tu quiseres”, dissera ele. O que ela quisesse. "O que tu quiseres”, dissera-lhe ao ouvido. Um sopro e ela percebeu que não esperaria por ele. Um minuto e decidiu, apesar da mágoa, que não queria. “O que tu quiseres, um café, um chá o que tu quiseres. O que tu quiseres, um café, um chá.” Já não queria nada. Já não o queria. Não queria. Atrasara-se três minutos. Eram seis horas e oito minutos, quando saiu. Parara de chover. Atravessaria a rua para apanhar o autocarro. O peão verde deixou-a correr. Agora, sim, beberia o café, o chá. O que quisesse. Entretanto anoitecera. Encolheu-se no frio. “Arrumei em três horas a infelicidade de quase uma vida”. Tirou o bilhete do bolso, entrou no autocarro. Estava cheio, cheirava a pessoas, a álcool e a humidade. “O costume. Tenho de engraxar as botas quando estiverem bem secas. Quer sentar-se aqui? Eu saio na próxima.”


terça-feira, 5 de novembro de 2013

A minha mesa de trabalho





A minha mesa de trabalho.


Li há pouco uma homenagem e louvor – seria? – às secretárias desarrumadas, percebi que vários génios da nossa história são génios apesar de  terem as suas secretárias desarrumadas, fiquei sem perceber se a sua genialidade está relacionada com a desarrumação da suas mesas de trabalho, ou se  as suas  mesas de trabalho estão desarrumadas, porque são génios, parece o mesmo, mas não é.  Passo a explicar, se Steve Jobs era genial e tinha sempre a mesa de trabalho desarrumada, esta era uma característica da sua genialidade, no entanto, se a mesa de trabalho está desarrumada, pode ser-se normal e desarrumado por força dos genes, da educação, do espaço, ou do tempo e não resulta da criatividade do génio, ou da genialidade do criativo. Na minha insipidez de pessoa normal, portanto sem genialidade, ou qualquer outra bênção, a secretária desarrumada é um privilégio, uma característica, que me assiste. Fico mais descansada. Posso ter a mesa de trabalho desarrumada e não ser um génio, porque até os génios têm as mesas, as secretárias desarrumadas. Dissolve-se, assim, um pouco, da minha banalidade, ganho afinidades com quem mudou o mundo e posso adiar o tempo que entender a tarefa árdua, inútil e efémera que é a limpeza da minha mesa de trabalho, isto é, deitar fora os folhetos de publicidade que estão à espera de ser rasgados; colocar por ordem as faturas que já paguei; livrar-me das caixas de medicamentos, porque já comprei o que precisava; guardar dentro das gavetas as agendas dos anos anteriores; inutilizar os cartões caducados; adivinhar o que está escrito nos duzentos e trinta e oito papelinhos autocolantes amarelos; decifrar os números nas folhas soltas que estão espalhadas, organizadas umas em cima das outras e olham para mim com ar complacente; amachucar e pôr no papelão as caixinhas de pastilha elástica vazias; ler e rasgar as cartas dos bancos, porque já aderi ao extrato digital; separar as Atuais que de tanto esperar esqueci a verdadeira razão por que as queria guardar; fechar os Dicionários e as Gramáticas; ouvir e meter dentro das respetivas caixas os cds que, em silêncio, vão ganhando pó; arquivar os últimos cartões escritos pelos amigos e as mensagens de amizade dos alunos, os envelopes das análises, os negativos das fotografias, do tempo em que se revelavam  rolos de fotografia, as instruções do computador, os talões do multibanco, as fotocópias dos cartões de cidadão da família toda, os certificados de presença e participação nas ações de formação, que já não dão créditos; deitar fora ou guardar todos os recibos que se acumularam na carteira estragada; anotar a referência de um baton rançoso; devolver o manual de utilização da Bimby, objeto que não tenho, nem nunca virei a ter; decorar o refrão daquelas canções; verificar a lista das compras e os vales do Continente; pôr à venda no Olx o comando de uma aparelhagem que já não funciona; destinar os bloquinhos de apontamentos com frases do Paulo Coelho, que nunca foram utilizados e, por fim, encontrar uma caneta ou um lápis afiado, porque, desde que o computador ocupa o maior espaço da minha mesa de trabalho, nunca encontro nem uma coisa, nem outra e tenho de me levantar, milhentas vezes, se preciso de tomar uma nota muito importante, ou escrever um recado. Afiar os lápis e guardar, preciosamente, as canetas de cores é a única coisa que justifica a canseira que é a limpeza de uma mesa de trabalho. Deve ser por isto que o Einstein desenvolveu a teoria da relatividade com um pauzinho de giz branco e o Mark Zuckerberg se lembrou que uma página de FaceBook era muito melhor do que pedir emprestada uma caneta para apontar o telefone das raparigas com quem queria sair.
Entretanto, a minha mesa de trabalho ficará como está – desarrumada e caótica - o único sinal da minha passagem por este mundo.
De momento não me ocorre mais nada.

 

 

domingo, 3 de novembro de 2013

O eclipse.

http://youtu.be/_H9P9hZwjbA   Madredeus,Tejo


O eclipse.


Para trás, por um par de horas, ficará a casa com as coisas todas lá dentro. Seguirá em frente, para o rio carregado e imenso, luminoso de prata escura. Ainda brilha. Atravessa o bairro, os cães asseados e burgueses, rapazes de bicicleta, dois casais de mão dada, uma mulher a falar muito alto empurra um homem, obriga-o a espreitar para dentro de uma casa em obras, ao longo das ruas as folhas dançam, têm o passo miúdo e lento da aragem e a cor do outono. Arrefeceu, está bom, quando acabar de atravessar o bairro terá calor e  a razão mais certa. A três de novembro, depois do eclipse, queima-se o que sobra e recomeça-se. Agora, precisa do rio, talvez consiga uma reconciliação. Afastou-se há alguns anos, prometeu que não lhe contaria segredos e jogaria a esperança, apenas, até à Trafaria, o resto dos sonhos ficariam para si. Continuou a descer. Entrou na avenida, os passeios largos tinham as raízes de algumas árvores à mostra, pedras soltas e desalinhadas pediam cuidado e atenção, aqui e ali, o alcatrão fendido, riscas brancas e semáforos também corriam para o rio. Olhou para as capelas mortuárias fechadas. Não se morre ao domingo. Não se pode estar morto ao domingo. Uma porção de passeio e um bocado de terra compunham as traseiras dos Jerónimos. Ciprestes viris alongavam-se, sumaúmas de copas redondas, agapantos por florir, musgo de cores diferentes, o cheiro a castanhas assadas e o rio em frente. Teria de espreitar a feira do jardim, um livro, uma jarra um relógio barroco, uma grafonola, quinquilharia, pechisbeques, selos, calendários, brinquedos em madeira. Abrandou o passo, tinha calor, havia uma réstia de sol a brilhar nas pratas e nos vidros, um neozelandês gritava um canção  que não conhecia, uma mulher romena estendia a mão, um cão tocava fole e o Tejo, mais perto, exigia que descesse pelo túnel. Desceu. Um caminho escuro, gente, cheiro a fritos, aguarelas. Ao domingo, nesta zona da cidade, cruzam-se pessoas de todas idades, origens e raças. Aquela hora, ali, há um centro do mundo. Aproximou-se do rio, desceu um degrau e sentou-se. “Aqui estás tu, e agora? Queres conversar?” E ficaram entretidos um com o outro. Ondinhas vinham até à margem, desfaziam-se, voltavam outras, desfaziam-se uma vez e outra. A água escura e pesada a ir e a vir. Sempre outra. Com o rio que ia e vinha, arrefeceu, serenou. Reconciliava-se com o rio. Não precisava de mais nada. Levantou-se, virou-lhe as costas e deixou-o  com todas as coisas lá dentro.

sábado, 2 de novembro de 2013

Mariana

 
 
Mariana.
 
Uma das pessoas mais bonitas que conheci faria hoje cem anos, tinha os olhos azuis , as mãos brancas e os dedos muitos compridos, chamava-se Mariana e era minha avó materna. Com ela aprendi a ser vaidosa, o ponto pé de flor, a arrumar gavetas e a ser independente. "Não há nada mais humilhante para uma mulher do que pedir dinheiro ao marido para ir ao cabeleireiro. Não trabalho, porque não sei fazer nada, não aprendi uma profissão. Sou doméstica, mas não sou um animal." Não gostava da palavra doméstica, preferia  dona de casa . " É o que eu sou. Sou dona desta casa". Era dona e senhora. Levantava-se muito cedo.  Destinava a semana, ao domingo à noite. Rigorosa e disciplinada,  cumpria as tarefas com método e a horas certas. Almoçava-se à uma em ponto. Lanchava-se às cinco. Jantava-se às oito.  Segunda-feira era dia de ir à mercearia, separar a roupa suja, arrumar o que o domingo e o almoço de família tirara do lugar. Os jornais arrumavam-se, não se deitavam fora. “Podem fazer falta.” Tudo se aproveitava até ao fim. Os sapatos eram engraxados e voltavam para as respetivas caixas. A roupa de domingo que não se podia lavar à mão ficava dobrada à espera da limpeza a seco, invenção que ela muito admirava, ou da escova molhada em água e vinagre para tirar o pó e o cheiro a usado. Terça era dia de comprar peixe, a carne comprava-se à quarta. Quinta-feira passava-se a ferro e engomava-se. Sexta era dia  de pão-de-ló, de uma limpeza a fundo e de  barrela - panela ao lume, água e sabão azul e branco. Procurava as nódoas, se não desaparecessem, punha-as a corar ao sol. Entretanto era preciso fazer o que as estações do ano a e as festas mandavam: marmelada no fim do verão, britar azeitonas em outubro,  encher figos  para o dia de finados, salgar a carne  quando a lua de novembro permitisse matar o porco, fritos em dezembro… Assim, as horas passavam, organizadas, sem preguiça nem desperdícios. A avó Mariana estava sempre ocupada. Vigilante. E um coração grande de mãe e depois avó. Chorou quando o filho foi para Angola. Organizou com primor o enxoval que a filha levou para Moçambique. Bordou o vestido de batizado da primeira neta. “ O meu António não gosta de padres, nem de batizados, mas a minha neta está muito longe e esta é a única forma de estar perto dela”. A neta era eu e o episódio do vestido bordado foi-me contado mais tarde por uma prima, quase tia. Viu com os olhos muito abertos o homem chegar à lua. Aceitou de bom grado os detergentes, o ferro elétrico, a panela de pressão, o caldo Knorr, o terylene e os collants. “ Que boa coisa é a curiosidade dos homens, preguiça é que não!”. Gostava de ler, apesar de escrever muito mal. “Só tenho a terceira classe, mas faço coisas que ninguém sabe fazer”, dizia a rir. Gostava muito de rir. Os meus avós riam muito e amavam-se ainda mais. Tratavam-se por menino e menina e nunca os vi zangados. Quando numa noite quente de agosto o fogo devorou o sonho e o trabalho de uma vida, os meus avós choraram, agarrados um ao outro, horas a fio. A avó Mariana e o avô António perderam a alegria. Vi a minha avó, muitas vezes esconder as lágrimas e agarrar as mãos do meu avô, mas nunca a vi cruzar os braços. “Preguiça, nem pensar!” E os dias continuaram disciplinados, com o ritmo que ela lhes impunha. Era uma mulher extraordinária a minha avó Mariana, nasceu a dois de novembro de mil novecentos e treze, num dia muito frio e depois de a mãe ter tido uma noite inteira com dores tortas. “ A minha mãe sofreu muito, quando eu nasci. Coitadinha. Não gosto de festejos no dia de finados, que dia tão triste para se nascer!” Não, não foi um dia triste e tu eras uma mulher muito bonita e muito sábia, Avó Mariana.
 
 
 
 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ai, tu!

http://youtu.be/fHjZQb-kGek

A Kiss To Build A dream On



Ai, tu!

 Talvez cozinhe uma feijoada com arroz basmati, ficará um prato ecuménico, o que interessa é que os miúdos  comem bem o que se lhes puser no prato, estão a crescer, têm sempre fome, e perguntam tudo, a paciência não se dissolve como uma carteira de antipirético, o benuron  faz baixar a febre, mais nada,  o grito de gaivota voltou, entretanto, será preciso mudar a água às margaridas, começam a murchar e seguem os raios de sol que entram na sala, durante um ano a vida muda,  acontecem  um ror de peripécias, Odeceixe tem o mar muito azul e, apesar de, o mar não ser o mesmo, será sempre o mesmo e igual, a caixilharia em alumínio de um  quarto de pensão de terceira categoria é o sinal que  as histórias que acabam mal estão sempre a acontecer, a febre baixou, as músicas do Ipod  dos  miúdos foram tiradas do youtube, deve ser pirataria e para  que servirão  as prateleiras cheias de bela música ?! Mas isto é assim como gostar do amarelo, não  se pode obrigar os miúdos a gostarem das mesmas canções, têm bom gosto, às vezes, não é coincidente, é só  ver que há mulheres (e homens) muito sensaborões, vestidos de um castanho indefinido, agora diz-se taupe, muito  certos e com muitas linhas  no curriculum e doutoramentos em assuntos fraturantes A importância-da-isotopia- da-cidadania-na-construção-de-um–saber-multidisciplinar-integrador-de-diferentes- metas- do-saber, um fôlego para se dizer o titulo, sempre muito atentos ao próximo e a amar muito o próximo e a defender as injustiças, nunca viram uma telenovela, nem dizem palavrões, pessoas com quem nos cruzamos na rua, todos os dias, muito atentas ao livro onde mergulham os olhos, sempre de autores desconhecidos, amam tudo e dizem todas aquela verdades libertadores, deite tudo cá para fora e desabafe e ame muito, muito a vida, mas depois penso que é tudo, outra vez, como gostar do amarelo, não se podem discutir as cores que fazem bater o coração de cada um, ter uma senhora que nos ajude nas coisas da casa é um hábito burguês, há quem não goste  que  se lhes arrume as cuecas e diga que  se tirarmos a carne congelada, de véspera, do congelador e a pusermos na parte de baixo do frigorífico, irá perdendo o gelo, mas o sabor mantem-se e a Conha Buika  canta, com uma voz maravilhosa, Las Simples Cosas, quando se olha para uma gravura em tons de cinza e dourado de vários matizes e brilhos, com uma moldura também dourada, mas com um vidro igual ao que se usa nos museus, não se vê o reflexo, fica uma macha de cinza e amarelo dourado numa parede branca, a gravura fica muito bonita, em baixo está uma outra com vidro normal, representa um barco em tons de cinza transparente  e azul claro, o vidro não é o que se usa nos museus e o  barco fica menos visível e, no entanto, é um barco, podia levar-nos para qualquer lugar, uma esperança qualquer, os dois quadros são uma metáfora da vida, o dia mais triste do calendário católico apostólico romano pode ser um dia muito feliz,  num ano e de uma grande mágoa, no ano seguinte, pensemos que o dia de natal talvez venha compor as alegrias e não há como um dia atrás do outro, as idas  ao supermercado devem ser feitas com muito cuidado e uma máquina de calcular, deve verificar-se o IVA e não comprar nada que não seja necessário, as compras ficam  iguais  a algumas pessoas  - cor taupe, uma cor parda que advinha uma vida também parda, nunca se sabe o que veem em nós, a imagem que damos é a imagem que faz, quer, deseja ou ama para quem nós olha, a acreditar, acredite-se  só no espelho e, mesmo assim, devemos desconfiar, algumas lojas têm espelhos que emagrecem, na Feira Popular havia uns espelhos que olhavam para nós como formas estranhas, nos provadores da Zara há uns espelhos que adelgaçam a silhueta (um bonito conjuntinho de palavras), os sacos de papel castanho que muitas pessoas trazem nas mãos, é uma mania de antes e durante o agora, um saco nas mãos dos portugueses, os sacos Zara foram substituídos por uns mais claros que dizem Primark a letras azuis, têm  de ser muito resistentes, porque transportarão as mais variadas intimidades  e, até, o almoço, mesmo nos dias de chuva, quando chove muito, os melhores são os de plástico, na época  dos saldos, muito mais resistentes,  há ainda muitas palavras por dizer e por escrever e olhar, nesses momentos as dores ficam suspensas e ir não é nenhum sofrimento, as dores aparecem quando começamos a sentir o que nos permite ser,  mas não deverá ser sentido, o joelho dói, a cabeça dói, a alma dói, vivemos bem quando não sentimos  que o joelho a cabeça e a alma existem, há quem viva uma vida inteira com muitas dores e com pouco dinheiro e sem dinheiro nenhum, há muitas vidas, basta olhar para as paragens dos autocarros, os carros parados nos semáforos, os centros comerciais, os hospitais, há muitas vidas a ser vividas e há muito outras que desaparecem, num ápice, é tudo muito rápido, a interpretação de um texto literário não pode ser feita  à pressa, olhar para um quadro de Marc Chagall deve ser feito com os olhos mais lentos, como o desejo do corpo de quem se ama, devagar, e com os sentidos todos, os pensamentos que ocupam as cabeças das pessoas são todos diferentes uns dos outros e estão contaminados com o que cada um fez com a sua própria vida, para não se pensar nas vidas  existem os livros, ler é uma redenção, um prémio, escrever só interessa a quem escreve, no momento que escreve, entre uma afirmação e outra, há um paradoxo, o que não retira a verdade às duas afirmações.

( Eu já te tinha dito que a tua cabeça não deve servir para pensar. Tu não me dás ouvidos. Ai, tu! )