O passo rápido. Ofegante. Entrou no prédio, a porta da rua, “Sempre aberta”, pensou. Enfim, assim,
seria mais fácil, os sacos de plástico, a mala que deslizou do ombro para o
chão, o guarda- chuva, abrir a caixa do correio, carregar no botão do elevador.
Parado no quinto. Avariado, encravado, inerte. “ Terei de subir as escadas, carregar tudo isto. Bem, farei duas
viagens. Mais um atraso. Não aguento
mais. Levo dois sacos, vou à casa de banho, venho buscar os outros dois. Decisões estratégicas muito difíceis.
Só tenho coisas que me ralem”. Riu com gosto, uma gargalhada. Apeteceu-lhe
aquela gargalhada, enquanto carregava o arroz, as bananas, o guarda - chuva, os
envelopes das contas. “Meses com quarenta
dias, hoje é dia dezanove, ainda falta meio
mês. Logo decidirei a que pagarei dentro do prazo. “ Outra gargalhada, mas mais
baixo, quase em surdina, não fossem os vizinhos pensar que ela tinha emalouquecido,
de vez. Emalouquecer. “Belo verbo, sem
dificuldades de conjugação, neologismo. Linguística e dois quilos de bacalhau congelado.” À porta
da sua casa, poisou de novo o supermercado que trouxera consigo o guarda-chuva
e a lição de linguística. Entrou. Um silêncio bom, a luz do fim de tarde ainda
lá estava. “ Menos mal”. Fechou a
porta, pensou no leite e na fruta que deixara à entrada do prédio, “Se me roubarem…não ali ninguém lhe roubaria
nada”, o bem mais precioso, daquele dia, estava muito direitinho, rijo,
difícil de partir, no saco com os ovos. Frágil, ao lado do frágil. Subiu e fez
o que tinha de ser feito. Urgente, às escuras. A chave ficara na porta, do lado
de fora, “Ai! Ai! Mãe” diria o filho
mais velho, sério e com o sorriso para dentro, “Deixaste outra vez a chave na porta?! Não te posso deixar sozinha”.
Bem, se o vizinho músico, com cara de poucos amigos (“conheço gente que tem
cara de poucos amigos e tem muitos amigos, seria o caso?”), se o vizinho do
lado, pensou, outra vez, no carão do vizinho, ouvisse, por acaso, os comentários
do filho, seria sentença, seguida de internamento, não teria salvação. Desceu
para ir buscar os outros sacos. Emalouqucer. A linguística e o bacalhau
congelado e o leite e outra gargalhada. “
Olá, Dª Teresa, como tem passado? Desculpe o barulho, mas temos o elevador
avariado e eu tive de fazer duas viagens. Sim, estou sozinha, ouviu vozes?
Ouviu rir? Dº Teresa, a senhora desculpe, mas não terá sido na televisão? Nas
Tardes da Júlia? Agora está a dar o Preço Certo? Não, nunca vejo. Se calhar
algum vizinho que entrou e a senhora confundiu as vozes. Pois, já não somos o
que éramos. Sou mais nova que a senhora, mas já vou perdendo a memória.
Obrigada, Dª Teresa. Sim emagreci um bocadinho. Gosta? É verdade, ficamos bem,
mais elegantes. Estão bem, obrigada, já estão de férias. Não, Dº Teresa, agora,
não me dá muito jeito. Beberemos um chazinho outro dia, prometo. Tenho os congelados
nos sacos (e a linguística, ia rir, mas engoli), tenho de arrumar as compras.
Boa tarde, Dª Teresa, muito prazer em vê-la, a senhora está sempre bonita (e estava, deveria ter sido uma bela mulher,
médica de crianças, mas” já não sirvo para nada, nem me deixam apalpar a barriga dos meus netos, são modernos, eles lá sabem”, tinha muito aprumo, mesmo quando trocava o
chinelo do pé direito com o do pé esquerdo e me batia à porta a perguntar se
aqueles chinelos eram os dela). Então até à próxima e, desculpe, mais uma vez,
o barulho, os sacos, o elevador. A senhora sabe como é que eu sou. Sempre a
falar. Ouve-me falar com os miúdos, ouve-me gritar. Pois. É da idade. Beijinhos
aos netos, Se precisar de alguma coisa, estou na porta ao lado. Beijinhos, vá
para dentro. Não apanhe frio. A temperatura desceu muito”. Mais uns segundos e teria sido apanhada a rir, a
gargalhar, pela Dº Teresa. Que vergonha, logo a Dº Teresa! Engraçada esta avó,
não gosta nem que lhe chamem doutora, nem avó. “ O meu marido, tratou-me sempre por Dª Teresa, depois de termos
casado, claro. Dº Teresa seria”. Quando entrou em casa a luz já era outra. Acendeu as luzes da sala. Hoje, não
haveria televisão. Ouviria o cd novo, outra voz feminina. Mas, por enquanto,
não. Adiaria mais um pouco o prazer. Já faltava pouco.
Saiu um suspiro. Guardou as chaves e começou a separar, a arrumar as
compras. Congelados, os frios, os
legumes, a fruta. Bem o que viria a seguir estava no mesmo saco dos ovos, ficaria
para depois. Mais uns minutos. Precisava de se preparar, talvez pôr o telefone
no silêncio. “Seria por pouco tempo.
Pouco tempo de relógio.” Ainda lhe faltava organizar as cartas, ver se tinha
alguma chamada registada, teria de verificar as janelas do primeiro andar. Já
arrumara os ovos. O prazer em cima da mesa. Pensou no Brel. Riu-se. Apanhou o
cd novo. Olhou para a caixa colorida, a fotografia, o nome diferente. Conhecia
duas canções. Começaria por ouvir as canções conhecidas, não queria
distrair-se. Pensava, apenas, naquele luxo que se oferecera a si própria.
Voltou à cozinha, estava tudo arrumado, na mesa, as cartas, tinham agora, uma
ordem que só ela conseguiria decifrar. Estava quase. Subiu. Olhou o rio, a
noite já acendera os candeeiros. Os carros em cima do passeio. Distinguiu o jacarandá
grande ao fim da rua. Hoje nem os jacarandás. Sentiu o cheiro dos fritos e
ouviu o telejornal na televisão dos vizinhos. Não pensaria nisso. Desceu, ajeitou o sofá,
endireitou as almofadas. Every time we say goodbye, 10, Cole Porter e Siljie Nergaard.
Tudo em ordem e em paz. Foi à
cozinha e trouxe o papel dourado, 100 gramas de puro prazer. Sentou-se. E como
se estivesse a tocar numa pequenina luz, num pequeno cristal, descolou as folhas
douradas. Sem as rasgar. Muito devagar. Lá dentro outro papel, branco, mais grosso,
menos brilhante e, geométricos e alinhados, vinte e quatro pequenos e muito
castanhos retângulos de chocolate. Partiu o primeiro, não pesou a força dos
dedos gulosos e saltaram-lhe para o colo dois bocados. Olhou-os por momentos, every time we say goodbye, ouviu, respirou
devagar e, com as pontas do polegar e do indicador, agarrou no bocado de
chocolate, já sem forma, e meteu-o na boca. Derreteu com dentes, língua e saliva.
Sentidos misturados. Embalados escassos segundos. No seu céu. Pertenceram-lhe,
por inteiro, o prazer e o gosto daquele momento. O sabor amargo e doce, 70% cacau,
e menos de cem gramas de uma massa castanha, reconciliaram-na durante doze
canções, com o frio de junho, as dores, a solidão e os meses longos. Chocolate – every time we
go away/we dye a little. Antes do seu dia acabar, arrumou na gaveta das
guloseimas os retângulos de prazer que tinham sobrado. O chocolate, para além
de cacau possui outras matérias orgânicas: verdade e sentimento. Álvaro de
Campos pensava como ela.
Amanhã, logo se vê, se fizer calor um copo de água pode salvar um longo
e solitário dia.
(Marisa Monte, chocolate, uma sugestão da minha playlist)