domingo, 30 de junho de 2013

esta depressão que me anima


A Naifa, Esta depressão que me anima




     « e este calor, e as folhas amarelas que murcharam, uma a uma, as pétalas da coroa imperial caíram, o pólen ficou espalhado em cima da mesa, um pó castanho e fininho, que é - ou deve ser - como  uma existência triste, que se desarranja, e ocupa uma sala inteira, e esta tristeza que transpira e as mangas arregaçadas a fazer de conta que se deitou mãos à obra e os livros  todos fora do sítio, porque os meninos não estão. E a vizinha chorou o dia todo a morte do gato e o relatório que tem de ser escrito, mesmo não tendo nada para dizer, e o Chiado tão longe, porque no caminho se tropeçava na experiência radical do campo na cidade e os dias tão sem uma aragem a mudar a sombra dos  jacarandás e os dias dos meses com quarenta dias e o verão a aquecer as paredes e a tornar a pele mole e o Guincho que nunca mais vi e as dores, por aqui, ainda a cumprimentar-me na sua condição mais essencial de mal inevitável e as senhoras cantam e os CDs todos fora do sítio e a conversa hoje foi comigo - eu que sou tão má companhia! E a lembrança de momentos felizes, e a inércia que não permite descobrir os filmes em cartaz e os velhos que envelhecem, cada dia, mais um bocadinho e o telefone não tocou ( hoje não seria um bom dia para consultas de mercado) e Nelson Mandela está quase a partir e, afinal, há vidas que valeram a pena ser vividas e um jornal a fazer uma sequela de Os Maias e depois outro fará uns episódios de O Malhadinhas, com a ajuda de um  glossário e um dia destes alguém se lembrará de dizer que afinal a  poesia não serve para nada: o Tony já tem poesia que chegue - até as galinhas e os coentros o  percebem. As televisões a oferecer milhares de euros e as pessoas a acreditarem e a certeza que somos apenas nós e ninguém que testemunhe o dia que não foi igual ao anterior, nunca é - como as mãos: não há duas iguais, e as notícias dizem que o moço de Boliqueime nada diz e já há incêndios a ocupar os bombeiros e D. Manuel Clemente foi a Itália buscar um fato novo, talvez traga umas novas orações, ou um milagre escondido no bolso de dentro e as marisqueiras vendem, nas montras, marisco comprado por tuta-e-meia e os meus olhos estão inchados e amanhã não estarão muito melhor, mas como eu tenho esta depressão que me anima, vou escrevendo estas balelas e, como diz o poeta, aproveitarei a dor pessoal para me sentir maior, deve ser mais ou menos assim, mas isso agora não interessa nada, porque somos apenas uma partícula, muito menos que uma partícula, e amanhã talvez a Praça do Comércio já não tenha salsa, nem caganitas de ovelha e esta depressão que me anima passeará comigo e poderei pensar em qualquer coisa e ficarei mais animada, porque, apesar de tudo, sempre tenho esta depressão que me anima. 
E não usei tantos pontos finais, preferi o e exprime junção, ligação e adição e mais - muitas - outras coisas e a esta depressão que me anima está tudo ligado.»

(…) Vivo do que me dão/nunca falto às aulas de esgrima/e todos os dias agradeço a deus/esta depressão que me anima (…)

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Nada








Hengki Koentjoro, Uns sapatos velhos no deserto




Hoje não há palavras, não há gestos, não há gosto, não há certezas, não há paz, não há sossego, não há sombra e o sol já mal se vê. Há uma canção e uns sapatos velhos no deserto, ou talvez não.

Amanhã, mais logo, ou depois. Outro dia qualquer. Outro. Dia. Um qualquer dia. Um dia.
Hoje, nada!
Nem um pouco mais do que isso.

As Palavras


                                         

                                                                     As palavras
No princípio era o verbo. Sabemos. E quanto vale um silêncio recomendamos aos nossos. Têm um dom: têm vários dons, têm várias vozes, várias peles, várias linhas que se cruzam e se descobrem e se despem e vestem com pudor, ou sem pudor. Tão traiçoeiras, feiticeiras e fadas que a enganos e certezas se oferecem. Num momento, a promessa de uma palavra que pertence, no momento seguinte, perdida. A promessa não se disse. Segredo à luz. Dor que poderia não rimar, ou rimar, ou soletrar, apenas, amor e esquecer. Dito. Não dito. A palavra e o eco que se quis ouvir. Certa. Insinua-se, faz-se de surpresa. O ar de um suspiro, quando de pedra, que nem nós somos, queremos que seja. Palavra, para sempre a pertencer, sem dúvida, sem sofrimento, a rimar  por dentro. Um entendimento, um escasso segundo, o devaneio leva-a o vento, a rimar com desalento. Disse. Não dito. Conjugações, pronomes  sem pessoas como se a nenhuma boca tivessem pertencido. Agarram-se ao quente, acomodam-se no calor, pedem colo, sexo, prazer e a mão. Na mão. Na nuvem, a um só céu pertenceram. Fugidias sem memória e sem tempo. Granito, betão, ou vidro, tanto faz. Valem o escasso momento do sonho que foram. Soletradas. Afagos. As palavras, como se no plural fossem, falam. A palavra, no singular, quando a um só abraço pertence e é. Água, chão, nudez, canto, braço, coração, dedos, cabeça e pés. Tudo se mistura. Quando se pertence na palavra certa que sem tempo, a um tempo, a dois, a um pertenceu. Foi. O momento. Caiu no chão desfez-se em saudade e tristeza, na promessa que saiu, de dentro, de verdade e à verdade daquele momento, apenas, pertenceu. Desarranjam-se num instante e quebram a eternidade que vale um suspiro. A palavra de tudo é ar, cama e berço. As palavras são de ninguém, de nada e no chão rolam e voltam. As palavras. E a palavra, verbo é no princípio. Onde começa. Onde morre. E em fumo se esvai ferida aberta de sentimento. Ou grito. As palavras. A palavra.

(A palavra não vale. Sente o que queiramos que valha. Vale o que quisemos sentir. E,em silêncio,adormecemos.)




quinta-feira, 27 de junho de 2013

Verão





                                                               O Verão
         Na esplanada o dia tinha restos de uma alegria soalheira que tardara, o calor sentia-se no assento das cadeiras e no tampo das mesas. Cadeiras verdes, gente sentada. Homens, mulheres, rapazes, raparigas, um cão. O dia estivera muito quente. A alegria do verão. Chegara. Àquela hora, quase sem sol, a cidade, ainda mal respirava, derretia a pele com a pele, deformava as silhuetas e afastava para muito longe pensamentos que não fossem de água com gelo, beira-mar e roupas coloridas de chinelos no pé. A esplanada riscada com as cores das saias, dos vestidos, das camisas e dos chapéus. A esplanada de óculos de sol que refletiam música lounge, gargalhadas e bebidas. Aparecia, escondida do sol, suspensa numa bolha de ar menos quente, quase gentil. Àquela hora, ainda o cansaço e o calor tremiam debaixo dos pés. A respiração do mar que começava a deixar-se tocar pela lua, aproximava-se. Devagar. Mais uns minutos e o verão garrido e ruidoso das vozes esquecer-se-ia de incomodar, desfazer a melhor das almas. A hora mais suave, apareceria de mansinho. E o encanto de mais uma noite ficaria por ali. Frente ao mar. Agitavam-se as conversas, esperava-se pelo troco, acertavam-se as despedidas. Em breve, a esplanada ficaria mais livre, mais tranquila com o som  de breves silêncios. A noite seria quente, mas já andavam folhas no ar. E rente ao chão. Sentia-se nos cabelos a luz da noite e, um pouco mais longe, os vagares de uma onda que vinha enrolar-se na areia. O calor abrandava e o alvoroço do fim de tarde de mãos molhadas em copos altos partira para outros copos, outros corpos, outro chão. O junho das cerejas, das suaves raparigas e outros poemas de amor. O junho dos dias luminosos. Ficava mais sereno quando a lua se aproximava e com a areia fazia um lugar feliz para enterrar os pés.



(Sol que tudo derrete, calor a escorrer pelas costas, mãos que escorregam e um ar que não se respira, o verão? Não, não nos damos bem. O mar, o entardecer e as ondas? Como paisagem, sim. Com palavras soltas e cheias de espuma. E, nem sempre.)










quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um passo e depois outro passo, um passo e outro passo a seguir.


Chiara Civello, Un passo dopo l'altro

 Hoje ficarei por aqui e ficarei muito bem. 

 Outros passos virão 
 depois desses 
 ainda mais outros 
 depois outros
  passos
 ou coisas
 ou pessoas
 ou alegrias
 ou céus
 ou tudo
ou nada

e depois deste passo outro passo virá

ou não.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

A Lua




                                                                 Lua
     A lua, uma lua redonda, uma lua bela e maior que a nossa mão aberta, a lua que mudou de cor e apareceu laranja e encarniçada, por trás de umas muralhas que não conheço. Rodeada de amigos, numa outra cidade, a lua que só voltaremos a ver - igual - daqui a dezoito anos, pareceu-me bela e grande. Mais nada. Para uma amiga do coração (de onde mais poderia ser?), o luar não foi um belo luar. Não, minha amiga, para ti hoje não houve um belo luar. Daqui, a muitos anos. Talvez. Um lugar feliz na tua memória. A tua mãe partiu ontem, estava doente. Tu estiveste sempre ali. A seu lado. Lutaram juntas. «Ela partiu. Estávamos as quatro - eu e as minhas irmãs. Cantámos canções de quando éramos crianças e a minha mãe foi fechando os olhos devagarinho, nós ouvimos o seu último suspiro. Partiu em paz. Gosto de pensar que ela já não sentia as dores». Quando a lua, belíssima lua, surgiu por trás daquelas muralhas, a tua dor não diminuiu, tu nem sequer para cima olhaste. Já não tinhas lágrimas. «De repente, fiquei mais serena, tenho-vos aqui, comigo. E estou mais só. Ficarei mais só, partiu com ela uma parte de mim que só a nós duas pertencia. Verei o mundo de uma outra forma. A minha mãe já não estará à janela, ao sol, não me dirá como se cozinha o melhor arroz doce, nem leremos as duas os seus versos. Leram o poema que escolhemos? O vosso abraço serenou-me. Como será amanhã? E o dia depois de amanhã? E depois? A vida continua, não é o que se costuma dizer? Não será a mesma vida? A de sempre, pois não?»
Que importa a cor da lua? Minha amiga, de coração, pede-me os abraços que precisares. Pede o que quiseres. Que importa, agora, o tamanho da lua?










sábado, 22 de junho de 2013

O dia mais longo.


O dia mais longo do ano, o início do verão; o tempo que insiste em passar; os rapazes de regresso; a casa outra vez cheia de gargalhadas; flores amarelas em jarras transparentes com água limpa; as ruas das principais cidades brasileiras e gente a gritar e a sofrer; o nosso ordenado encolhido e os que nem ordenado; o trabalho  sem subsídio e sem férias; e sem trabalho e sem nada; a temperatura que continuou a descer; os professores  grevistas, faltosos e castigados; a vida em segunda mão, com pouca roupa; a roupa em segunda mão, de muitas vidas; os festivais de verão, sem verão e sem gente; a mãe da vizinha do lado é uma velhinha  e gemeu o dia todo; uma amiga foi traída pelo marido, ou pelo  próprio coração; o telefone fixo calou-se para sempre e teve de ser substituído por um novo, mas que por ser tão novo, ainda não sabe falar; muito estardalhaço e dor no tornozelo esquerdo, uma entorse (nome feminino que significa distensão violenta dos ligamentos, acompanhada de dor intensa e, por vezes, agravada pela inflamação das partes moles que rodeiam a articulação, Dicionário Verbo da Língua Portuguesa)  - gelo, Voltaren ( genérico), um  pé elástico e um par de canadianas. A minha mãe costuma dizer que aos pobres o pão cai sempre com o lado da manteiga virado para baixo
Pronto, um dia igual aos outros – nada de novo, por aqui, debaixo de um sol tímido e encolhido.
Amanhã é sempre o dia seguinte. Pois.

“Ai! Esse seu olhar quando encontra o meu/ fala de umas coisas que eu não posso acreditar


sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ricardo, meu amigo.





António Palolo, Sem título, 1966



Ricardo, meu amigo


Penso em ti e apetece-me fumar.Um cigarro. Contigo, de preferência ao fim do dia, numa esplanada. Comer um prato de caracóis. Um prego e uma imperial, depois uma lambreta. Um café a seguir. Sempre com palavras e histórias. As tuas viagens. A fortuna que “fodeste em três tempos,” como  costumavas  dizer. “ Se fosse hoje, teria sido tudo tão diferente! Mas acho que é sempre assim, não é?” Fumavas muito e tinhas os dedos das tuas mãos, quadradas e fortes, manchados de nicotina. Roías as unhas até ao fim. “Sabes,Betinha, fumar é o meu maior vício, sempre foi, experimentei as drogas todas, bebi quase tudo que há para beber, mas é do cigarro que eu gosto, devo morrer com os pulmões encarnados. Sim, encarnados. O maço de SG gigante não é encarnado?” E soltavas uma gargalhada sonora, contagiante. Insultuosa. Falavas mal. Vernáculo apurado. Muito alto. Careca e narigudo. Um metro e sessenta e oito de ternura e bondade. Genuíno. Nunca tinhas dinheiro. Nunca estiveste num emprego mais do que um mês. Recebias o ordenado e despedias-te. Voltavas à mesada da tua mãe. “ Não tenho remorsos, os bens também são meus. Eu gastei muito, mas a Flausina ainda tem muito e eu sou herdeiro. Vou morrer cedo, ainda lhe sobrarão alguns trocos”. A Betinha era eu, Flausina era a mãe, Princesa de Oiro, a filha (longe e distante que ele não via muitas vezes.” A mãe diz que eu sou má influência, deve ter razão. Talvez quando vierem para Cascais…talvez.” E era a única sombra que, por momentos, lhe parava o olhar e os gestos. Gesticulava. Corria. Andava muito depressa. “ Não sei, parece-me que estou sempre atrasado, gosto de ser pontual.” E eras muito pontual. Eu também. Nunca esperámos um pelo outro. Conhecemo-nos numa noite de muitos copos e dança. Começámos a conversar ao balcão do lugar da moda, setembro de noventa e dois, talvez uma quinta-feira. Já não me lembro. Banalidades, a música, o tempo, o ambiente “Costuma vir aqui? Cerimonioso. Comigo. Sempre. “Se costumo vir aqui? Não estávamos bem a falar do ambiente?” respondi-lhe e ficámos amigos. Irmãos. Amizade. Fraternidade. Muita cumplicidade, companheirismo e partilha. Habituámo-nos a partilhar tudo. O pouco quando havia pouco o muito quando havia um pouco mais. “ Gostas daquele casaco? Saiu um livro de poesia, deves gostar, queres?” Mimava-me com palavras, livros, flores, a mão dele na minha do Cais do Sodré até ao Castelo de São Jorge, uma noite quente de junho - o que tínhamos para contar um ao outro não se calara com o Lou Reed e o seu’ Good night, ladies. Good night.Passeámos noites inteiras por Lisboa, apanhámos muitas manhãs de verão, o primeiro Cacilheiro para ir à praia. Ficavas sentado ao meu lado, quando eu tinha de trabalhar. “Vou fazer-te uma sopa de legumes e uma salada de frutas, tens de te alimentar, estás a trabalhar há muitas horas”. Gostávamos de ir à ópera e ao ballet “Ainda tenho um fato em bom estado, mas não te posso pagar a entrada”. Íamos na mesma. Éramos inseparáveis. Um ano, dois anos, três anos. Que interessa isso agora? Às vezes, namorávamos, afastávamo-nos um do outro, mas por pouco tempo. Precisávamos de dizer tudo. “Parecemos umas pitas adolescentes. Queres ir ao cinema? Compra uns bifes que eu cozinho-te o melhor bife do mundo. Vou à adega e roubo uma garrafa à Flausina. Sete, sete e meia. Até logo, Betinha” Abraçávamo-nos quando nos encontrávamos, onde quer que estivéssemos. “São pai e filha?” Perguntavam com frequência, respondíamos como nos apetecia. E ríamos. “ Eu podia ser teu pai, nasci em 47 e tu em 59, podia ser teu pai. “Pois “. Respondia-lhe. Um dia chegaste com uma caixa grande, muito grande. Cheia de fotografias. “ Olha este é o Palolo, nunca ouviste falar? Não conheces? Grande pintor, não tenho notícias dele há muito tempo, deve andar pelo mundo, como eu. Olha esta foi tirada em Paris, estás a ver este puto a tocar? É o Jorge Palma? Havemos de ir a casa dele um dia destes, tenho o  número apontado  numa agenda, logo procuro.” Passámos uma tarde a passear pela América, pela Austrália, pela Europa. “ É como o teu poeta: ‘viajar é perder países’ e eu podia tê-los perdido todos contigo. Então não chores, não te pedi em casamento. Chiça, deves ser ‘muita’ má de aturar.” E, foram assim muitas tardes, muitas noites, uma amizade como deve ser o Amor.

 Um dia. Uma ninharia, uma troca de palavras enviesada e zangámo-nos. Todas as pessoas se zangam. Mas nós sabíamos que se alguma vez nos zangássemos uma zanga feia, ficaríamos  sem  concerto.  O coração desarranjado. Separámo-nos. “ Sem mágoas?” “Sem mágoas.” Mas nunca mais nos vimos.

Morreste-me, para sempre, uns meses antes de eu fazer cinquenta anos. Não conheceste os meus filhos e não te devolvi o livro do Jack Kerouac, sublinhado e anotado, por ti, com a tua letra miudinha e perfeita. Morreste-me e eu não te perdoo. Fizeste-me muita falta. Fazes-me falta. Eras meu amigo. Generoso. Um coração inteiro e cheio. Inteligente. Muito atrevido. O mundo inteiro cabia dentro de ti. Gostavas das mulheres. Ouvias jazz e Mahler. Não te cansavas de me dizer “As pessoas bonitas como tu têm a obrigação de ser felizes. És a princesa da história do colchão e da ervilha. Não te rales. A puta da vida? Betinha, tu és maior que ela.” Eras meu amigo. Meu amigo.

Verdadeiro

Morreste-me. E eu todos os dias tenho histórias novas para te contar.

Uma vez, ríamos e dançávamos e tu disseste” Esta gaja tem uma voz do caraças (talvez não tenhas usado estas palavras). Gosto desta canção. Betinha, hoje dançamos a noite toda!”

 Ricardo, What’s love got do to with it?  - (Tina Turner)





quinta-feira, 20 de junho de 2013

JEZEBEL








                                                      JEZEBEL
Muito direita e muito magra. Muito loira e ruiva. Um loiro fulvo. Branca- transparente, a cor da pele. Olheiras nos olhos claros, não sei bem se são verdes. Claros. Talvez cor de avelã. Olhos claros. Garanto. Talvez azuis. Não sei bem, não fixei a cor. Indefinida. O brilho de um olhar muito inteligente é o que me lembro de ver, desde que a conheço. Conhecemo-nos na família, entre livros e arroz de conquilhas. Também comíamos gelados coloridos, protegidos do calor dos nossos dedos por duas bolachas quadradas. Gelado de sabores diferentes e duas bolachas.  Estalavam na boca e sabiam a baunilha. Quando ficavam moles e o gelado escorria das mãos até aos cotovelos, nós ríamos. Eu era quase crescida ela era uma miúda arruivada - uma cor diferente - e franzina, muito bonita, que fazia parte da família, nos almoços de domingo, no mês de agosto. ” Aquela sobrinha da Conceição é mesmo bonita. Que bela criança”, dizia o meu avô, “Uma menina muito bonita”, repetíamos em coro, sempre que a encontrávamos. Eu gostava daquela miúda. Gostava do seu rosto de boneca. Muito sossegada que faziam gosto em passear, ou sentar ao colo do tio que nos amassava com beijos e abraços. Muito tranquila, não aborrecia ninguém, ouvia as conversas dos crescidos e ajudava-me de boa vontade a levantar a mesa. Eu refilava:  “ Sou sempre eu! É injusto”, “ A Luisinha ajuda-te:”, tranquilizavam-me, eu dizia que sim e aceitava a ajuda, contrariada, lá arrumávamos, mais ou menos, a cozinha. A Luisinha olhava-me e imitava os meus gestos, “Tem sido muito boa de criar esta criança”, dizia a avó da Luisinha. (Não sei se hoje terá mesma opinião!) A Luisinha e eu crescemos, o mês de agosto mudou as nossas rotinas e durante muitos anos, apenas, ouvíamos falar, uma da outra. Os tios diziam-me que os pais andavam de cabeça perdida,” Não sabem o que lhe hão de fazer. Acho que até já saiu de casa da minha sobrinha”, “ Boa”, pensava eu. Soube mais tarde que os livros que eu deixara espalhados no casarão da nossa tia lhe tinham feito companhia durante os dias de sol de julho a setembro. A Luisinha não gostava de praia. “ Aquelas férias de verão na casa da tia Conceição eram um inferno”, confessou-me, mais tarde.” Como eu odiava tudo aquilo, o baldinho, a pazinha, a sombrinha e o sol. O sol. Não aguentava o sol. Devo ter um sangue diferente do das outras pessoas.” A minha amiga tem um sangue diferente de todas as pessoas que eu conheço. Passámos muitos anos longe uma da outra. Víamo-nos nas fotografias dos casamentos, dos batizados e encontrámo-nos, uma vez, no funeral do tio que nos amassava com beijos e abraços. Mal nos falámos – ela ainda era a Luisinha e eu já era outra pessoa. Nessa altura, ela também já era outra pessoa, a Luísa. Muito direita, muito magra, ainda arruivada. Muito séria. “A vida não tem sido nossa amiga”, digo-lhe, às vezes, “ Estavas à espera que a vida fosse como nos livros que lemos? Desengana-te, amiga e olha para as coisas boas”. Rio-me, quando ela me diz isto, porque me lembro das suas mãos magrinhas e pequeninas a arrumar a saladeira de cristal, no armário da cozinha, da tia Conceição “ Se a saladeira se partir a culpa é tua! Deverias ser tu a arrumar a loiça, ela ainda é uma criança”. Acho que a Luísa nunca foi criança, poucas coisas a fazem rir e todos os dias são combate, suor e lágrimas. Herdou, não sabemos de que lado da família, o gosto pela pintura e pela fotografia. O gosto, o talento e a disciplina de uma trabalhadora.“ Até pareces alemã, da Alemanha, do outro lado do muro, da RDA”, Já percebi,” responde-me, rimo-nos as duas. “ Se eu não trabalhar, definho, além disso, tenho contas para pagar. Filhos. Colégios. Tu sabes, como é!”Sim, sei como é, aliás, talvez por termos comido tanto gelado e arrumado tanta loiça juntas, fomos presenteadas com vidas tão idênticas. Mas a Luísa é feita de aço, de ternura, solidariedade. Talento. Feita de amor. Arregaça as mangas para pintar uma tela gigantesca, acompanhar uma amiga numa cama de hospital ou fazer uma mousse de chocolate. Faz promessas e cumpre. Nunca a ouvi dizer logo se faz e, por razões que só ela conhecerá, a primeira vez que a ouvi dizer não, foi dias depois do marido ter morrido. Vive com os filhos, dois gatos, um aquário. Tem nas mãos as marcas dos quadros que pinta. Dedos finos, pequeninos, manchados de cores. Magrinha a silhueta de um traço só de nobreza e vestido cor de rosa.
A condizer com a cor do cabelo.
Não estamos juntas muitas vezes. Nem sempre estamos de acordo e tenho a certeza que já não me ouve quando partilho com ela o último desgosto de amor. As minhas inseguranças incomodam-na como o sol nos meses de verão. E é muito mais corajosa do que eu. Acrescento que não tenho uma única peça de roupa cor de rosa, nem nenhum quadro ou fotografia assinados, por ela, nas minhas paredes. Nada. Não preciso.
Somos amigas.
Somos boas amigas. Gostamos da nossa amizade. Assim como está.

Um dia disse-me que tinha ouvido, pela primeira vez, Jezebel, talvez a melhor canção de Sade Adu, em casa de um namorado por quem tinha estado muito apaixonada, mas “ Era só eu, ele nem por isso”. Luisinha  – “ Não te rias!” -  aqui tens só para ti Jezebel e a Sade Adu.  “ O namorado não consegui encontrar”.

Um abraço, amiga, adoro-te.







quarta-feira, 19 de junho de 2013

MARISA MONTE - CHOCOLATE


Junho e frio.


O passo rápido. Ofegante. Entrou no prédio, a porta da rua, “Sempre aberta”, pensou. Enfim, assim, seria mais fácil, os sacos de plástico, a mala que deslizou do ombro para o chão, o guarda- chuva, abrir a caixa do correio, carregar no botão do elevador. Parado no quinto. Avariado, encravado, inerte. “ Terei de subir as escadas, carregar tudo isto. Bem, farei duas viagens. Mais um atraso. Não aguento mais. Levo dois sacos, vou à casa de banho, venho buscar os outros dois. Decisões estratégicas muito difíceis. Só tenho coisas que me ralem”. Riu com gosto, uma gargalhada. Apeteceu-lhe aquela gargalhada, enquanto carregava o arroz, as bananas, o guarda - chuva, os envelopes das contas. “Meses com quarenta dias, hoje é dia dezanove, ainda falta meio mês. Logo decidirei a que pagarei dentro do prazo. “ Outra gargalhada, mas mais baixo, quase em surdina, não fossem os vizinhos pensar que ela tinha emalouquecido, de vez. Emalouquecer. “Belo verbo, sem dificuldades de conjugação, neologismo. Linguística e dois quilos de bacalhau congelado.” À porta da sua casa, poisou de novo o supermercado que trouxera consigo o guarda-chuva e a lição de linguística. Entrou. Um silêncio bom, a luz do fim de tarde ainda lá estava. “ Menos mal”. Fechou a porta, pensou no leite e na fruta que deixara à entrada do prédio, “Se me roubarem…não ali ninguém lhe roubaria nada”, o bem mais precioso, daquele dia, estava muito direitinho, rijo, difícil de partir, no saco com os ovos. Frágil, ao lado do frágil. Subiu e fez o que tinha de ser feito. Urgente, às escuras. A chave ficara na porta, do lado de fora, “Ai! Ai! Mãe” diria o filho mais velho, sério e com o sorriso para dentro, “Deixaste outra vez a chave na porta?! Não te posso deixar sozinha”. Bem, se o vizinho músico, com cara de poucos amigos (“conheço gente que tem cara de poucos amigos e tem muitos amigos, seria o caso?”), se o vizinho do lado, pensou, outra vez, no carão do vizinho, ouvisse, por acaso, os comentários do filho, seria sentença, seguida de internamento, não teria salvação. Desceu para ir buscar os outros sacos. Emalouqucer. A linguística e o bacalhau congelado e o leite e outra gargalhada. “ Olá, Dª Teresa, como tem passado? Desculpe o barulho, mas temos o elevador avariado e eu tive de fazer duas viagens. Sim, estou sozinha, ouviu vozes? Ouviu rir? Dº Teresa, a senhora desculpe, mas não terá sido na televisão? Nas Tardes da Júlia? Agora está a dar o Preço Certo? Não, nunca vejo. Se calhar algum vizinho que entrou e a senhora confundiu as vozes. Pois, já não somos o que éramos. Sou mais nova que a senhora, mas já vou perdendo a memória. Obrigada, Dª Teresa. Sim emagreci um bocadinho. Gosta? É verdade, ficamos bem, mais elegantes. Estão bem, obrigada, já estão de férias. Não, Dº Teresa, agora, não me dá muito jeito. Beberemos um chazinho outro dia, prometo. Tenho os congelados nos sacos (e a linguística, ia rir, mas engoli), tenho de arrumar as compras. Boa tarde, Dª Teresa, muito prazer em vê-la, a senhora está sempre bonita (e estava, deveria ter sido uma bela mulher, médica de crianças, mas” já não sirvo para nada, nem me deixam apalpar a barriga dos  meus netos, são modernos, eles lá sabem”, tinha muito aprumo, mesmo quando trocava o chinelo do pé direito com o do pé esquerdo e me batia à porta a perguntar se aqueles chinelos eram os dela). Então até à próxima e, desculpe, mais uma vez, o barulho, os sacos, o elevador. A senhora sabe como é que eu sou. Sempre a falar. Ouve-me falar com os miúdos, ouve-me gritar. Pois. É da idade. Beijinhos aos netos, Se precisar de alguma coisa, estou na porta ao lado. Beijinhos, vá para dentro. Não apanhe frio. A temperatura desceu muito”. Mais uns segundos e teria sido apanhada a rir, a gargalhar, pela Dº Teresa. Que vergonha, logo a Dº Teresa! Engraçada esta avó, não gosta nem que lhe chamem doutora, nem avó. “ O meu marido, tratou-me sempre por Dª Teresa, depois de termos casado, claro. Dº Teresa seria”. Quando entrou em casa a luz já era outra. Acendeu as luzes da sala. Hoje, não haveria televisão. Ouviria o cd novo, outra voz feminina. Mas, por enquanto, não. Adiaria mais um pouco o prazer. Já faltava pouco.

Saiu um suspiro. Guardou as chaves e começou a separar, a arrumar as compras. Congelados,  os frios, os legumes, a fruta. Bem o que viria a seguir estava no mesmo saco dos ovos, ficaria para depois. Mais uns minutos. Precisava de se preparar, talvez pôr o telefone no silêncio. “Seria por pouco tempo. Pouco tempo de relógio.” Ainda lhe faltava organizar as cartas, ver se tinha alguma chamada registada, teria de verificar as janelas do primeiro andar. Já arrumara os ovos. O prazer em cima da mesa. Pensou no Brel. Riu-se. Apanhou o cd novo. Olhou para a caixa colorida, a fotografia, o nome diferente. Conhecia duas canções. Começaria por ouvir as canções conhecidas, não queria distrair-se. Pensava, apenas, naquele luxo que se oferecera a si própria. Voltou à cozinha, estava tudo arrumado, na mesa, as cartas, tinham agora, uma ordem que só ela conseguiria decifrar. Estava quase. Subiu. Olhou o rio, a noite já acendera os candeeiros. Os carros em cima do passeio. Distinguiu o jacarandá grande ao fim da rua. Hoje nem os jacarandás. Sentiu o cheiro dos fritos e ouviu o telejornal na televisão dos vizinhos.  Não pensaria nisso. Desceu, ajeitou o sofá, endireitou as almofadas. Every time we say goodbye, 10, Cole Porter e Siljie Nergaard. Tudo em ordem e em paz. Foi à cozinha e trouxe o papel dourado, 100 gramas de puro prazer. Sentou-se. E como se estivesse a tocar numa pequenina luz, num pequeno cristal, descolou as folhas douradas. Sem as rasgar. Muito devagar. Lá dentro outro papel, branco, mais grosso, menos brilhante e, geométricos e alinhados, vinte e quatro pequenos e muito castanhos retângulos de chocolate. Partiu o primeiro, não pesou a força dos dedos gulosos e saltaram-lhe para o colo dois bocados. Olhou-os por momentos, every time we say goodbye, ouviu, respirou devagar e, com as pontas do polegar e do indicador, agarrou no bocado de chocolate, já sem forma, e meteu-o na boca. Derreteu com dentes, língua e saliva. Sentidos misturados. Embalados escassos segundos. No seu céu. Pertenceram-lhe, por inteiro, o prazer e o gosto daquele momento. O sabor amargo e doce, 70% cacau, e menos de cem gramas de uma massa castanha, reconciliaram-na durante doze canções, com o frio de junho, as dores, a solidão e os meses longos. Chocolate every time we go away/we dye a little. Antes do seu dia acabar, arrumou na gaveta das guloseimas os retângulos de prazer que tinham sobrado. O chocolate, para além de cacau possui outras matérias orgânicas: verdade e sentimento. Álvaro de Campos pensava como ela.

Amanhã, logo se vê, se fizer calor um copo de água pode salvar um longo e solitário dia.  
(Marisa Monte, chocolate, uma sugestão da minha playlist)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Queixa das Almas Jovens Censuradas (poema de Natália Correia, interpretação José Mario Branco)






QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS

 

Quando, a treze de maio, iniciei a minha aventura na blogosfera, sem nenhuma inspiração divina, nem influência de Belém, decidi escrever sobre a vida, o amor, a morte, a felicidade, a infelicidade, o medo, a música, o chocolate, as saudades, enfim, a vida e as coisas da vidinha e, acima de tudo e de todos  escrever, desafiar a folha em branco, carpir mágoas, encontrar histórias e brincar com as palavras. Também com sangue, coração, lágrimas, até ao osso. Decidira não me deixar arrastar pelo desânimo da crise, nem pelas dores deste país que já não conheço, não por não querer participar na res publica, mas porque queria que a minha escrita fosse feita de palavrar, sem outro dever e intenção. Fui ingénua, quando pensei que o cartão de cidadão e o número de contribuinte se pudesse guardar na carteira  servindo apenas  interesses burocráticos. Agora, culpo-me por me ter reduzido, desta forma tão displicente (arrisco: a palavra é forte), a uma fazedora de literatura  - ai de mim! - com mais ou menos espuma, com mais ou menos estilo ou tesão (epíteto escolhido por um amigo, epíteto no masculino, pois claro), uma palavrosa leviana entretida com o seu umbigo. Devaneios e desculpas arrumados, introdução longa concluída, levanto-me,  escrevo e grito, deito para fora raiva, sentimento de injustiça desalento e desânimo. A solidariedade  e o gosto pela minha  profissão tomaram-me de assalto, isto é, a partir de agora serão esses dedos que irão percorrer o teclado.

Nas últimas horas, tenho ouvido impropérios - variados e de cores diferentes - insultos e outras tiradas do mais fino recorte literário, contra os preguiçosos, faltosos, egoístas e incompetentes professores. Os professores estão a prejudicar os alunos, os professores estão a esquecer-se do 'superior interesse dos alunos', os professores têm demonstrado a sua irresponsabilidade e blábláblá. Chega! Agora, grito eu: sou professora de alma e coração! Desde que me perguntaram a primeira vez: O que é que queres ser quando fores grande? Dou aulas, sim, são dadas, porque o preço é tão baixo, que não encontro outro verbo mais apropriado. Adiante. Estou no meu trigésimo segundo ano letivo e tenho dedicado grande parte da minha vida ao estudo e à leitura para a preparação de aulas, trabalho, em média, por semana, muito mais de quarenta horas. Eu e tantos outros que conheço. A minha escola  tem os equipamentos degradados, paredes rachadas, vidros partidos, persianas que não sobem nem descem, insuficiente número de auxiliares de ação educativa, instalações sanitárias insalubres e  tudo o resto que se possa imaginar numa escola que esteve dois anos à espera "de obras extraordinárias" que acabaram por ir sabe-se lá para onde...Acrescente-se que as turmas têm entre tinta a trinta e três alunos, sentados e arrumadinhos em salas onde cabem vinte e oito, no máximo,  trinta alunos - com muita boa vontade. Aliás, a minha escola funciona a boa vontade. Computadores por dois ou  três alunos? O que é isso? Uma miragem. Quadros negros, normais, os de sempre, onde se escreve com giz branco? Devem ser meia dúzia. Salas para trabalhos de multimédia (estratégia tão profícua e recorrente nos programas que preparam os alunos portugueses para os desafios europeus)? Temos uma onde bem sentados e cobertos de boa vontade cabem vinte e cinco pessoas, professor incluído. Écran, aquela tela larga e branca onde se mexem animais pessoas e coisas, não sei se teremos algum. Papel para fotocópia a preto e branco? Temos pouco. Para fotocópias a cores não há dinheiro. Salas de trabalho para professores? Onde calha. Se calhar, faltar algum professor. Laboratórios equipados de acordo com as exigências dos programas? Mais ou menos, pura magia dos professores das áreas científicas. Uma boa biblioteca? Sim, temos estantes com livros muito bem organizados, na melhor sala da escola  - a mediateca - que funciona como sala de estudo, de reuniões, de palestras, de representações teatrais, concursos literários e de línguas. Uma sala. Vinte mesas algumas cadeiras. Uma sala. Às vezes está fechada porque não há ninguém disponível para poder receber e trabalhar com os alunos. Eu estou a fazer o retrato da minha escola. Acredito que, salvo mais um vidro partido ou uma racha na parede, o retrato deve ser  igual a tantas e tantas outras escolas neste país. No país profundo, o tal, o real. E este retrato peca por defeito, não me quis alargar nas lamentações. Mas temos bons resultados nos exames nacionais, temos alunos de primeiríssima água, professores de excelência que se desdobram em reuniões intermináveis, afogam-se em decretos-lei, agonizam em legislação. Funcionários diligentes. Trabalha-se de janeiro a dezembro. A minha escola, os professores da minha escola, os funcionários da minha escola respeitam os alunos e são respeitados. Funcionam todos com boa vontade. É a minha escola - há dezassete anos que faço parte desta minha escola. Não é a escola ideal, perfeita - essa escola não existe! Então expliquem-me, se souberem, quem tem prejudicado os alunos? Quem todos os anos letivos, uns a seguir aos outos, tem deitado fora ‘o superior interesse’ dos alunos? Quem é que lei, atrás de lei, tem demonstrado uma grande e Superior irresponsabilidade? Quem é que governo sim, governo sim tem dado provas de grande incompetência?  Não têm sido os professores. Não. Se existe ensino público de qualidade é porque HÁ MUITO BONS PROFESSORES espalhados por este  - quase - país. Dia dezassete haverá greve aos exames, já houve greve durante o período destinado às avaliações do final do período. Muito bem, abençoadas greves e, se não tiverem servido para nada, se nenhuma das reivindicações for atendida, um mérito, pelo menos um,  estas greves tiveram: os professores mexem com a sociedade civil. Os professores existem. Os professores são gente. Os professores são gente de bem. Os professores trabalham e, como diz uma amiga minha, fazem-no por amor, porque interesse não têm nenhum!( Se tiverem trabalho. Se ficarem colocados. Se tiverem horário.) Se os alunos não fizerem exame de Português no dia dezassete, farão noutro dia. As férias marcadas com a família ficam comprometidas, pois ficarão. Quando os médicos fazem greve não se adiam as operações? Quando os pilotos fazem greve não aumentam  as filas de espera nos aeroportos? Quando os maquinistas fazem greve não chegamos atrasados aos empregos? Então se a greve não for sentida, na pele, por todos, para que servirá então? Não nos esqueçamos que quem corrige as provas de exame são os professores, sim, também, terão as suas férias, as suas vidas comprometidas, as famílias em alvoroço. Se depois das férias, se tiverem férias, ainda tiverem emprego! Porque os professores também são pessoas, gente, com sangue, com cabeça, com tristezas, com alegrias, com doenças. Pensem nos professores, pensemos nos professores. Não me dirijo a si, senhor ministro (com minúscula) porque não costumo falar com pessoas que me desrespeitam, mas seria bom que, de vez em quando, se olhasse para os professores e os víssemos. Forma do verbo ver. Quanto ao resto não me pronuncio, não acredito nas aparições de Nossa Senhora de Fátima, nem no subsídio de férias em junho, nem no moço de Boliqueime. Coisas minhas.

 

Daqui a pouco os alunos realizarão, ou não, o exame de Latim e de Português, eu ficarei em casa, estou doente, mas é ao lado de todos os que, como eu são professores, que me poderão encontrar.

 

Bem hajam!

 




















domingo, 16 de junho de 2013

Un billet doux : J'aime Paris au mois de mai - Charles Aznavour & Dianne Reeves



                            
Un billet doux


Meu Amor


Tive de partir mais cedo, desculpa. Serei breve. Não te acordei. Não tive coragem. Conversámos até tão tarde e vinhas tão cansado. Tão preocupado. Tão distante de tudo o que prometemos um ao outro. Tivemos ambos um dia difícil. Acontece. E, como sabes, nem sempre é como a imaginámos, a vida. Adiante. Saí a correr - hoje trabalharei até mais tarde. À noite já cá não estarei. Deixo-te um copo de sumo ao lado do jornal, aí na mesa da cozinha. Fiz café. Na tua gaveta da cómoda encontrarás as  camisas. As  gravatas também estão arrumadas como tu gostas. (mas que conversa é esta?) Sacudirás o sono e o cansaço como entenderes. O tempo  pertence-te. Tens, por aí, espalhados pela casa, restos de mim, da minha pele, dos meus beijos. Que poderemos fazer? O meu cheiro ficou na almofada e não consegui arrumar o meu desgosto a contento dos dois. Será melhor assim, as palavras já não nos chegam. A vida correu-nos para lugares diferentes. Deita fora a mágoa. Não deixes a tigela da gata sem comida e, se não te entenderes com a marca da ração, pede ajuda à Dª Josefina. Não consegui arrumar os meus sapatos e ainda há caixas com fotografias na escada, ao lado da janela da sala, por favor, não me deites fora. Virei buscar tudo, de acordo com o que escolhemos ser. Meu amor - ainda é esse o teu nome - não desistas das recordações: neste momento, não temos mais nada. Não desistas. Não te deixes ir. Desculpa, correr assim, sem me despedir, sem ouvirmos as nossas vozes. Tenho pressa, não sei dizer adeus. Perdoa-me. Mas às vezes, tantas vezes, faltava-me o ar e o nosso quotidiano agarrou-nos e esquecemos de dar as mãos. A culpa não é tua. A culpa não é minha- não há culpa, não pode haver dor. Não permitas a dor a teu lado. Vou-me embora. Decidimos que eu partiria primeiro - já dissemos tudo isto um ao outro! Confessámos as palavras necessárias. Escolhemos - acabou por acontecer - separar os livros e os chapéus. Não consigo dizer mais nada. Talvez penses que sou egoísta, talvez seja. Mas já não olhávamos um para o outro. Tínhamos por companhia uma solidão que acordava sempre à mesma hora. Tornámo-nos transparentes. Gemíamos de impaciência. Não sei quando começámos vazios um do outro. Não sei quando os silêncios começaram a doer, não sei. És muito distraída. Costumavas dizer. Não sabemos. Desculpa, um ou outro beijo que tenha ficado por arrumar. Mas não te quis acordar. Desculpa os minutos que ficarás com este bilhete nas mãos. Não choremos, por favor. Deixemo-nos ficar na moldura. A sorrir. 
Eu prometia umas palavras breves, escritas à pressa.... 
Não posso partir com um beijo na porta do frigorífico. Não consigo! 
Adeus  

P.S. Vou esta noite para Paris. Sozinha.

Sabes como gosto de Paris no mês de maio!  

sábado, 15 de junho de 2013

Caro Professor Nuno Crato,
Acredite que é com imenso desgosto que lhe escrevo esta carta aberta.
Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual governo.
Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros, incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e entristece-me.
Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor Professor ...não sei o que teria sido de mim!
Depois, casei-me com uma professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos; dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo, estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem descrevia nas suas análises.
Durante estes muitos anos a viver com professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares de passeios que não demos.
Não sei se esses milhares e milhares de horas perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da repartição.
Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados, continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua profissão.
Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir: implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.
J. A. Moreira do blog Os diletantes em 14/6/2013

Anne Sofie Von Otter & Brad Mehldau - Avec le temps



E com o tempo,
 o tempo que vai,
o tempo virá,
o que tempo leva o tempo não traz
( No intervalo de um tempo que vai e o tempo que virá,
 a vida constrói
 um tempo 
 vem,
depois irá.)
Outro tempo que também o tempo levará,
um tempo, 
assim como as marés,
como as luas,
como os ventos,
em todos os tempos
o tempo que temos 
 
depois irá. 

(como é breve o tempo das cerejas)


quinta-feira, 13 de junho de 2013


Há dias assim e há noites quase iguais a assim.









 Gostaria de ter ido ver o mar. Gostaria de ter passeado à beira mar. Gostaria de ter olhado para o céu e sentir que as preocupações só valem o que valem, nem mais, nem menos. Gostaria que a minha mãe estivesse ao pé de mim e me explicasse, mais uma vez, como se faz compota de laranja. Gostaria de não ter sentido dores. Gostaria de temperaturas mais primaveris. Não gosto de calor. Pensei que nada acontece por acaso – se B ficou com C então B e C gostam da mesma canção (como na canção do Carlos Tê), embora B goste de canções e C faça sempre o trabalho de casa. Falei com duas amigas que se esqueceram de me telefonar ontem. Todos os anos telefonam no dia seguinte. O verniz que escolhi para pintar as unhas é encarnado e o meu filho João disse-me que nenhum homem gosta de uma mulher de unhas pintadas de encarnado. Encolhi os ombros e disse-lhe que a cor do verniz das unhas das mulheres é indiferente para a maioria dos homens. Expliquei-lhe que o encarnado o verde, ou o azul das unhas é apenas um pormenor que as mulheres acrescentam à sua vaidade. Não me pareceu que concordasse comigo e eu também não estou convencida. Li mais um bocado, de um fôlego só, da vida da Clarice Lispector. O José lavou o cartão de cidadão na máquina da roupa e ainda não sei se sobreviveu, enquanto escrevo tudo isto, oiço um cd chamado Quiet at the Kitchen Door. Depois do almoço - às vezes almoço - convidei uma amiga para tomar café e ela respondeu-me que sim, claro que tomaria um café, ou um chá, comigo… quando regressasse: “ Estou em Tóquio”. Bem, está certo. Afinal, a aldeia global tem alguma utilidade. Ao fim do dia, a minha vizinha de cima estendeu duas toalhas de praia, uma azul- turquesa e outra verde-alface,completamente encharcadas, dois traços coloridos e molhados sobre o meu estendal, uma linha branca de roupa omo lava mais branco, agora tenho várias peças íntimas de cor indefinida e duas camisas novas: uma parece uma túnica hippie, qual batik dos anos sessenta, a outra esverdeada, um verde nojento, que nem o Shrek  usaria. Somos apenas um ponto no Universo (com maiúscula),certo? Todo o dia pensei na greve do dia dezassete e tive de explicar que os professores não querem o mal dos alunos, nem estão a f…… (muitos pis) a vida aos meninos que querem ir para a universidade (“E, não minha senhora ao senhor ministro da educação (com minúscula) não lhe assiste razão nenhuma!”). Continuo sem perceber por que tenho tanta aversão a arrumar papéis e não sei onde arrumarei todos os livros que se têm acumulado junto às janelas e ao lado da minha mesa de cabeceira, nos últimos três meses. As flores amarelas, porque está mais calor, murcham muito depressa e há moscas e mosquitos a zumbir à volta da roseira da cozinha. Podiam ir manifestar a sua alegria para outra cozinha maior e mais moderna. Hoje escrevo assim, estas coisas da minha vidinha de que o O’Neil não gostaria, mas o O’Neil terá textos muito mais interessantes para ler - quem é que irá ler este rol de um quotidiano tão enfezado? – porque todo o dia ouvi Tout Doucement cantado por Feist,  cheguei à conclusão que o meu dia hoje não foi nem doce, nem suave, nem devagar. Há dias assim.

Enquanto uma amiga me pintava as unhas do tal encarnado fiquei a saber que o Santo António satisfará os desejos das meninas já desusadas e das velhas, ainda pecadoras, se o colocarem de cabeça para baixo, ou no congelador. Não tenho nenhum Santo António, mas se eu acreditasse em santos, pedir-lhe-ia um pouco de bom senso (pouco já é bom para quem não tem nenhum) para um rapaz de Boliqueime, que eu não conheço e mais uma parede no meu escritório. Não peço mais nada, porque não acredito nessas coisas. Mas tenho congelador.

E, como junho é o mês de Pessoa, vou para dentro a pensar (ainda que pensar seja estar doente dos olhos) que” [...] As cousas não têm significação: têm existência./As cousas são o único sentido oculto das cousas” Alberto Caeiro, XXXIX

Como amanhã, já é hoje, já ganhei algumas horas ao dia que está quase a nascer, as outras passarão, como tiverem de passar: há coisas sobre as quais nunca sei nada.

 À noite darei notícias. Se for esse o caso.

 

terça-feira, 11 de junho de 2013

Parabéns, José.

                                              Parabéns, José
Na véspera, ao jantar comi arroz de polvo, não sou grande apreciadora, mais tarde, tu virias a detestar. Uma vez, dissemos-te, para te convencer a comer, que era arroz de salsichas chinesas e tu respondeste, com uma colher cheia de arroz a olhar para nós inteligente e alegre: “Arroz de salsichas chinesas?! Isto é arroz de polvo, arroz de polvo, mãe”. Tinhas razão. Se não tivesses, comido eu não me importaria, nem teria coragem para te contrariar. Outras dias, houve em que não precisei de te dizer nada. Há dias, em que não preciso de te dizer nada. Nasceste no dia a seguir a eu ter comido o arroz de polvo, foi esse o jantar, mas podia ter sido outro. Era uma quarta-feira. À noite, a Maria Bethânia cantou no Coliseu. Nasceste eram quatro horas da tarde, estava muito calor e a manhã cinzenta coube numa janela do Hospital Santa Maria. Nasceste bem, nasceste como o César e eu não me importei. Nasceste rosado, perfeito, careca. Choraste no momento exato. Vieste para o meu peito e, quando olhei para ti, chorei. Não chorei muito, não queria que me conhecesses a chorar. Nasceste bem. Poderias ter ido para a capa da Pais e Filhos, mas eu não deixei: queria-te só para mim. “Parece-se com o Menino Jesus”, disse várias vezes a tua avó. “Esta minhoca é minha, e já não é minhoca, “ dizia a médica que nos apresentou um ao outro. Passeaste ao seu colo enquanto as minhas pernas acordavam. Andaste de elevador, foste apresentado aos teus avós e estiveste muito tranquilo em todos os abraços que te quiseram agarrar. “Este é o menino mais bonito do hospital. É o bebé do dia e hoje nasceram muitos”. Eu tinha trinta e oito anos e estava apavorada, e agora Zé? E agora José? E tudo foi tão fácil, comias (pouco, é verdade, mas só nos primeiros dias) e dormias. Dormias. Gostas de dormir. Não gostavas de chorar e quando começaste a ver o mundo já tinhas a cabeça muito firme e segura. Riste muito cedo. Tudo te fazia rir e rias para todas as pessoas que falavam contigo. E eram muitas. Eras muito bonito. Ainda és. Quando deste os primeiros passos, eu estava ao teu lado e tu querias água. Rua e mãe foram as tuas primeiras palavras. Gostavas de passear e a rua era um sítio de cores e perguntas. Éramos felizes. Nasceste feliz. Ainda hoje, quando estou muito cansada e oiço o mundo que não imaginei para ti, penso nas tuas gargalhadas, amo-te um bocadinho mais e fico em paz. Momentos de muita paz. Trouxeste este amor sem tamanho. Nasceste bem. Nasceste feliz e cresceste muito depressa. Gostaste da escola do recreio e de ter amigos. Fazes amigos, assim como ris, com o coração, com os olhos. Gostas de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. E, se não fosse a barba que já não te dá sossego, ainda construirias muitos castelos e exércitos de Lego. És generoso. Mas como hoje fazes dezasseis anos nem vou dizer da tua teimosia, nem da tua vaidade. (“ Como é possível os meus colegas nunca terem ouvido falar de Picasso?”). O tempo para ti cabe numa hora, num minuto, num segundo, tens a tua medida e o teu relógio. Às vezes, penso que as tuas horas têm mais minutos do que as minhas. Um dia disseram-me que o ruído não te incomoda e a que a estupidez é, para ti, o pior mal da humanidade. “Sem dramas”, concluíram. Concordei. Concordo. Por cima do teu sorriso benevolente, aceitarias - imperturbável - uma chuva de meteoritos ou um avião de papel a voar à tua volta. Tens dentro de ti uma força que eu não conheço. E és gentil. Gostas de pensar: “Pode sentir-se para dentro?” perguntaste, uma vez, à beira mar.” Sim, pode-se, Claro!” Respondi. “AH! Então está bem!”. Talvez, nesse momento, tenhas decidido como deverias olhar para o mundo, para a vida, para as pessoas, para as coisas.” Olha, meu anjo bom, eu ainda não sei!”. Hoje, fazes dezasseis anos e eu estou, outra vez, apavorada: e agora, meu anjo bom, que vida será a tua? Que mundo será o teu? Nem tu, nem eu sabemos. Mas com a tua coragem e amor à vida, continuarás a rir (também de ti próprio) e construirás os teus castelos, amarás as tuas rosas e farás do mundo um lugar mais saboroso. Leva o tempo que quiseres – ainda tens muito para gastar. Parabéns, José e obrigada pelo “Gosto muito de ti, mãe”, todas as noites. Nunca te esqueces. Obrigada, José por todas as vezes que me dizes “Calma, mãe. Tem calma”.

Tens razão, meu anjo bom, o importante é estarmos aqui e gostarmos tanto um do outro.

(Quando tudo corre bem e estamos mais felizes, trato os meus filhos por “anjo bom”, eles nunca se importaram, gostam e eu também)

 Parabéns, José

O Primeiro Dia Sérgio Godinho