A casa
(O quintal)
A porta de
madeira tinha dois enormes postigos de ferro e vidro. Olhava através deles o
mundo da rua pouco movimentada e o corredor de mosaicos, pretos, brancos e
cinzentos, luzidios e alinhados. A porta tinha uma mão e uma esfera de ferro. A
mão era muito feia e ao longo dos anos aguentou várias camadas de tinta prateada.
A tinta não podia estalar, nem acastanhar-se de ferrugem. Uma mão e um mundo
sempre bem pintados, cor de chumbo, que anunciavam as visitas e o carteiro. Os
postigos eram de vidro rugoso azul-escuro e verde-garrafa e protegiam do frio e
dos olhos que se atreviam. Castanha e maciça, a porta da casa sessenta e seis,
na rua Conselheiro Frederico Ramirez. Uma porta, dois retângulos de vidro, uma
maçaneta, um número a preto e branco e entrava-se nesta casa. Era a casa dos tempos de bibe, brincadeiras, histórias,
fantasmas, flores, colo e, mais tarde, livros. Cheirava a alfazema e açúcar
queimado. A casa dos meus avós. Era uma casa feliz, movimentada e fresca.
Quando se entrava e pisava os mosaicos do corredor, admiravam-se as plantas em
vasos de faiança com desenhos de flores e pessoas e uma porta de vidros
coloridos que abria a sala principal. No corredor comprido, de um lado e de outro, as portas sempre
fechadas dos quartos, da sala de jantar que só se abria para as visitas muito
importantes e do escritório. As fechaduras e os puxadores das portas eram de
ouro polido e brilhante. Um líquido cor-de-rosa e as páginas d’ O Século faziam
magia, eu só percebia as mãos tisnadas. Paredes rosadas, pintadas
com mestria. Um traço vermelho sangue, quase castanho, atava as pontas de um laço
a meio das paredes da sala maior. Uma sala de luz, mesas, uma telefonia,
cadeiras de fundo de palhinha e cabedal, aparadores, uma coluna de madeira que
suportava um feto, jarras com flores, um armário de portas de arame a proteger
o pão-de-ló e a marmelada, uma estante pintada de castanho e forrada a papel. Tudo
acontecia nesta sala. Uma das paredes era de vidro e abria-se para o quintal,
para o alegrete: uma trepadeira de cabelos verdes sem pente e bagas vermelhas,
roseiras, catos e bichos-de-conta. No verão, num mês como este, o quintal era
muito fresco - limonada, pêssegos, pão caseiro com manteiga, o colo do meu avô,
o jornal aberto no chão, os gatos que se passeavam nos muros e um
vestido de bordado inglês. O fim das tardes de verão, no quintal da sala onde
tudo acontecia. À noite acendia-se a luz de fora e jantava-se na penumbra,
fugíamos dos mosquitos e do calor do suão. Na mesa redonda, encostada a uma das
‘folhas’ de vidro da porta principal, esticava-se uma toalha branca, arrumavam-se
as travessas com os carapaus fritos, o arroz de tomate e a salada, uma garrafa
de vinho, um jarro de água e a cesta do pão. Eu não comia, mas via o reflexo do
vinho a manchar a toalha branca e ouvia as conversas dos adultos, havia muita
gente à volta da mesa e antes de anoitecer já se descava a fruta e
arrumava a loiça na cozinha. A noite começava ainda de dia e as conversas
arrastavam-se até à chegada do céu enluarado.
Nos meses de inverno, quando
chovia e fazia muito frio eu encostava a cara aos vidros, com a respiração desenhava o sol e barcos à vela, durante
horas via o ping-ping da chuva. O inverno trazia o arco-íris, a roupa secar nas
costas das cadeiras à roda das mesas e a braseira do fogo aos bocadinhos. Nos
dias mais sombrios, a luz dos candeeiros iluminava as lajes molhadas do quintal
da sala principal da casa.
(continua)