quarta-feira, 31 de julho de 2013

A casa





                                      A casa

(O quintal)

        A porta de madeira tinha dois enormes postigos de ferro e vidro. Olhava através deles o mundo da rua pouco movimentada e o corredor de mosaicos, pretos, brancos e cinzentos, luzidios e alinhados. A porta tinha uma mão e uma esfera de ferro. A mão era muito feia e ao longo dos anos aguentou várias camadas de tinta prateada. A tinta não podia estalar, nem acastanhar-se de ferrugem. Uma mão e um mundo sempre bem pintados, cor de chumbo, que anunciavam as visitas e o carteiro. Os postigos eram de vidro rugoso azul-escuro e verde-garrafa e protegiam do frio e dos olhos que se atreviam. Castanha e maciça, a porta da casa sessenta e seis, na rua Conselheiro Frederico Ramirez. Uma porta, dois retângulos de vidro, uma maçaneta, um número a preto e branco e entrava-se nesta casa. Era a casa dos tempos de bibe, brincadeiras, histórias, fantasmas, flores, colo e, mais tarde, livros. Cheirava a alfazema e açúcar queimado. A  casa dos meus avós. Era uma casa feliz, movimentada e fresca. Quando se entrava e pisava os mosaicos do corredor, admiravam-se as plantas em vasos de faiança com desenhos de flores e pessoas e uma porta de vidros coloridos que abria a sala principal. No corredor comprido,  de um lado e de outro, as portas sempre fechadas dos quartos, da sala de jantar que só se abria para as visitas muito importantes e do escritório. As fechaduras e os puxadores das portas eram de ouro polido e brilhante. Um líquido cor-de-rosa e as páginas d’ O Século faziam magia, eu só percebia as mãos tisnadas. Paredes rosadas, pintadas com mestria. Um traço vermelho sangue, quase castanho, atava as pontas de um laço a meio das paredes da sala maior. Uma sala de luz, mesas, uma telefonia, cadeiras de fundo de palhinha e cabedal, aparadores, uma coluna de madeira que suportava um feto, jarras com flores, um armário de portas de arame a proteger o pão-de-ló e a marmelada, uma estante pintada de castanho e forrada a papel. Tudo acontecia nesta sala. Uma das paredes era de vidro e abria-se para o quintal, para o alegrete: uma trepadeira de cabelos verdes sem pente e bagas vermelhas, roseiras, catos e bichos-de-conta. No verão, num mês como este, o quintal era muito fresco - limonada, pêssegos, pão caseiro com manteiga, o colo do meu avô, o jornal aberto no chão, os gatos que se passeavam nos muros e um vestido de bordado inglês. O fim das tardes de verão, no quintal da sala onde tudo acontecia. À noite acendia-se a luz de fora e jantava-se na penumbra, fugíamos dos mosquitos e do calor do suão. Na mesa redonda, encostada a uma das ‘folhas’ de vidro da porta principal, esticava-se uma toalha branca, arrumavam-se as travessas com os carapaus fritos, o arroz de tomate e a salada, uma garrafa de vinho, um jarro de água e a cesta do pão. Eu não comia, mas via o reflexo do vinho a manchar a toalha branca e ouvia as conversas dos adultos, havia muita gente à volta da mesa e antes de anoitecer já se descava a fruta e arrumava a loiça na cozinha. A noite começava ainda de dia e as conversas arrastavam-se até à chegada do céu enluarado.
Nos meses de inverno, quando chovia e fazia muito frio eu encostava a cara aos vidros, com a respiração  desenhava o sol e barcos à vela, durante horas via o ping-ping da chuva. O inverno trazia o arco-íris, a roupa secar nas costas das cadeiras à roda das mesas e a braseira do fogo aos bocadinhos. Nos dias mais sombrios, a luz dos candeeiros iluminava as lajes molhadas do quintal da sala principal da casa.
(continua)

segunda-feira, 29 de julho de 2013

No peito da Célia só cabe um coração.




                               No peito da Célia só cabe um coração.

(Vou contar-vos como o homem morreu, como o coração deixou de bater, dentro do seu.)

      Sentiu  durante a tarde o vento frio, correntes de ar que se escapavam através de uma porta entreaberta, golpes de vento  no calor do corpo, as mãos a estalar os dedos. A voz não respondia à palavra. Não conseguia engolir, a garganta secara.Tão pouco um som. A tarde alongava-se. Em silêncio. O coração batia de forma irregular.  Ela não sossegava. Queria partir. Afastar-se do frio  que lhe gelava a espera. Procurava respostas, uma saída, um eco. O outro coração não chegava. Horas e horas sentada a bordar as desculpas e a contar os segundos que construíam a sua esperança. No jardim. Vazio e um chão que não acrescentava coisa nenhuma, um espaço em branco. O rio corria a seus pés. Muito negro e fundo. Olhava a luz que se agitava na maré. A lua minguava. A seu lado, passeavam e entendiam-se as pessoas. Cumpriam o encontro acertado. Ela continuava a esperar. Mas adivinhava o fim triste. Descalçou-se. Sentou-se no chão. E esperou. Uns minutos. De pedra. Longos e frios. Depois, começou a arrumar as promessas feitas. Olhou as unhas sem pele, a bainha desfeita da saia, a mala com o telefone impassível, as sandálias de verniz. Nada lhe pertencia. Também  não tinha importância. Não valera a pena o encontro.  Nem o casaco novo. Levantou-se. Muito direita. Sentiu os pés frios. Sorriu e seguiu em frente. Atravessou a rua. O último autocarro tardou a chegar.
 Ao domingo, o horário era diferente.

(Sentada à minha frente, a Célia não está a falar ao telemóvel. Não ouve música. Segue com os olhos tristes e mal riscados a linha de rio que nos acompanha.)







domingo, 28 de julho de 2013

POST SCRIPTUM


Afasto de ti com
raiva surda

o corpo
as mãos
o pensamento

e apago secreta
uma a uma
as velas acesas do teu vento

liberta ponho o corpo
em seu lugar
visto a cidade
penteio um rio sedento

penso ganhar
e fujo
e não entendo

penso dormir
mas não consigo
o tempo

E cede-se o vazio
sobre o meu ventre

e segue-se a saudade
em seu sustento

E digo este meu vício
dos teus olhos
de um verde tão lento
muito lento

Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

MARIA TERESA HORTA, in MINHA SENHORA DE MIM ( D. Quixote, 1971), in POESIA REUNIDA (D. Quixote, 2009)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A day in a life of a fool.


Quando entrei  na pastelaria, deixei  para trás um dia muito nublado e um vento que levantava a poeira e avermelhava os olhos. Senti um arrepio de frio nos braços e nas pernas. Àquela hora a pastelaria era um refeitório ruidoso. Nas mesas, os croissants mistos acompanhavam conversas remotas, pedaços de reclamações, chá frio e cabeças grisalhas muito penteadinhas pelo cabeleireiro de sempre.Juntavam-se os fatos cinzentos, as havaianas descaradas e os decotes avantajados. Era hora de almoço, um bitoque com ovo a cavalo, um mini prato do dia, uma imperial, um copo de vinho da casa, a sobremesa era por conta  e trazia caramelo. As batatas fritas podiam substituir o arroz, o preço era o mesmo. O cliente escolhia e tinha sempre razão. No ar, os pedidos dos empregados, o fumo da zona de fumadores, as graças das senhoras de vestido de seda e a boa disposição do patrão. Ainda assobiava  as sílabas finais. A  camisa branca e imaculada, o dedo mindinho e um grande anel de ouro diziam do sucesso do negócio. Fechado para férias de 5 a 15 de Agosto anunciava o regresso à terra que ainda lá estava. Correra-lhe bem a vida, os empregados obedeciam-lhe e não se metia em política. Ali nas Avenidas Novas a sua política era o trabalho e que não faltassem os pastéis de bacalhau. Servia toda a gente da mesma maneira e a sua " Pérola das Avenidas" ainda tinha o mesmo espelho de há trinta anos. A casa de banho tinha a chave no balcão. O chão já fora substituído e o balcão frigorífico com uma barra de cor de laranja e outra verde- ranho mostrava o pudim de ovos, os sumos bem fresquinhos e as talhadas de melão. O balcão era recente, as mesas e as cadeiras, muito limpinhas eram da mesma família do espelho e aguardavam as férias dos senhores doutores e que a crise abrandasse. O balcão é a montra: o cliente tem de escolher. Doce ou fruta. O preço tinha acompanhado o iva e o gosto gourmet dos clientes mais fiéis, que ali almoçavam durante a semana. Orgulhoso e à caixa garantia o pré-pagamento, ao balcão, e o empregado vai já atendê-lo, à mesa. Serviço asseado, comida caseira e clientela seleccionada.  Lá fora,um dia de Julho, sem sol e ventoso. Comeria qualquer coisa, a um canto, procurei a zona de não fumadores pedi uma sopa, um queijo fresco. Talvez uma peça de fruta e um café. Seria um almoço rápido - tinha consulta às duas e meia e a médica era pontual. Tentava alhear-me das conversas. O ruído dos copos e e dos pratos e dos talheres começavam a inquietar-me. Por um momento, levantei os olhos da tigela de legumes a boiar num caldo amarelado. Assustei-me. A colher na mão e o braço no ar. Paralisada. Olhava a figura gigante de um homem, que acabara de entrar. Muito alto. Muito magro. Cabelos brancos. Crespos. O casaco coçado, esfiapado nas mangas e na gola, a camisa de colarinho levantado, sapatos engraxados compunham um retrato de homem digno. Velho e triste. Quando se aproximou do balcão de cor dos tempos modernos, vi-lhe os olhos e as mãos. Um olhar que não se fixava. As mãos raspavam uma na outra. Longas e transparentes.Esfregavam-se no casaco,  mexiam o cabelo. Colavam-se e não conseguiam agarrar. Iam à boca. Puxavam o nariz, tapavam os olhos. Começou a estalar os dedos e a entoar uma canção. Em surdina. Quase em silêncio. Não se percebia o que cantava. Não conseguia ouvi-lo. Mas percebi-lhe o tom vago. Infeliz. Uma tristeza perturbante. Muito maior que o espaço que ocupava. Nas mesas as senhoras incomodavam-se. Abafavam-se as censuras. Um olhar de repulsa cúmplice atravessava a pastelaria e amarrotava as sedas e as poses. O ruído dos copos e facas abrandou. A voz impaciente de  intolerância, miséria esquecida e anel de ouro no dedo mindinho, fez-se ouvir. Definida e sem hesitações: " Vai-te embora maluco. Sai daqui imediatamente. Volta para o teu lugar, ali ao cima da rua. Vai-te embora. Sai. Rua. Maluco de um raio. Estás a incomodar as senhoras. Rua! Já disse!" O Gigante, muito trémulo. O olhar perdido. As mãos estendidas. Olhava para a porta. Olhava a cara do patrão. Não fixava o olhar, mas uma lágrima grossa soltou-se. Fechou a boca. Passou a mão pelos cabelos muito brancos. Encolheu os ombros, compôs a dignidade e saiu. Um único gesto. Dois passos e o vento de Lisboa, no mês de Julho, arrastou-o para longe. Deixei de o ver. Afastei o prato de caldo amarelo. Pedi a conta e saí. Sem fruta e sem café. 
O céu nublado fez-me companhia. Não senti o vento. Mas pensei no homem de anel de ouro no dedo mindinho, no balcão frigorífico verde-ranho. No homem que saiu da terra onde nasceu e que tem uma pastelaria nas Avenidas Novas. O homem que continua a ser a terra de onde nunca saiu. Lembrei-me de outros homens iguais a este. Lembrei-me do moço de Boliqueime. Lembrei-me do moço de Santa Comba Dão. Lembrei-me do moço de Santarém. Lembrei-me de outros moços e de outras moças. Homens e mulheres que vêem o mundo a preto e branco. E nem o verde-ranho distinguem.

A Day in a Life of a Fool, Cassandra Wilson
http://youtu.be/SHRn-uKViqg

terça-feira, 16 de julho de 2013

Um de cada lado, dois braços por cima dos meus ombros.

   As palavras saem-lhes atabalhoadas, a boca, a massa, o molho de tomate, o campeonato de remo, as estratégias no último jogo de computador. Desafiam-se, implicam um com o outro, os argumentos, os amigos da praia, a família dos amigos, o pai que está desempregado, eram ricos, mãe, os avós ajudam-nos, porque têm casa na praia e tudo, duas casas na praia e em praias diferentes, gosto muito deste meu amigo, também gosto dos pais e dos avós, continuam a contar o dia que passou, as histórias do primo e da outra prima que querem ter a mesma profissão e concorrem um com o outro, as tarde na praia com os primos mais pequenos, os jantares nas noites quentes,  os fins de semana em casa do pai e a família do outro lado, andar de autocarro, atravessar a cidade para ir para o remo e o jiu-jitsu, conjugar a conversa e a escolha da sobremesa, os livros a ler nas férias, as gargalhadas, porque os disparates saem, as bocas abriram-se mais, espirram um palavrão, o queijo ralado salpica a toalha, já toda a gente nas outras mesas os ouviu, não gostaram da gargalhada mais sonora, os crepes chegam quando a última aventura no barco foi explicada, minuto a minuto, teremos de vir mais cedo, temos de voltar na primeira semana de Setembro, no próximo campeonato não quero ficar tão mal classificado é uma vergonha para o treinador, quando chega o café, o estágio foi marcado para o próximo ano, com um dos maiores mestres do mundo, para o pai me deixar ir tenho de subir as notas, sobretudo a alemão, as vantagens de saber muitas línguas e de se poder ler e viajar, aprendem e tudo perguntam, o pontapé debaixo da mesa encalhou na minha bota, saiu a reprimenda e um desculpa, mãe, era para ele, não conseguem controlar o tom da voz, nem o tamanho das pernas, encalham nas cadeiras quando se levantam, deixam os talheres arrumados e a mesa ficou limpa, olham para trás, não esqueceram nada, certificaram-se, mais um encontrão. As cabeças no ar, olham em volta, têm o passo largo, a temperatura da rua lá fora e a temperatura cá dentro, não se separam, preparam mais uma conversa, pedem desculpa, o quarto não ficou muito bem arrumado, amanhã arrumamos, de certeza, estão do lado das certezas, pedem às férias que esperem, abrandam o passo o telefone tocou, falam à vez, perguntam se podem ir ver os jogos, mais razões a justificar a compra de uns auscultadores. Concordámos que seria no fim do mês. Parei. Esperaram, um de cada lado, estão muito altos, um braço e outro braço sobre os meus ombros, olham em volta, orgulhosos, levanto a cabeça, quero ver-lhes os olhos brilhantes, estamos os três colados e voou outra gargalhada, parámos e ficámos a ouvi-la. Em breve, estaremos juntos outra vez. 


Bon Jovi, We weren't born to follow
http://www.youtube.com/watch?v=qF3D2oiy6YA






  

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Um altar muito particular. (encontrei outra vez a Célia no autocarro)


  

.....e depois quando me devolveres o que de mim levaste, quando dos dias felizes entenderes o vazio que criaste, quando disseres que para mim podes olhar, quando nos meus olhos os teus, em paz, descansares, quando me apertares no teu peito e a saudade conseguires arrancar, quando do mar uma distância de  sonho criares, quando nas margens da pele o meu perfume perderes, quando olhares para a lua e o seu brilho entenderes, quando de tudo o que te disse algum poema conseguires pensar, quando tudo o que te conto te fizer sorrir, então farei do meu colo o altar particular de uma solidão que partiu....
(Não conhecia Cati Freitas. Gostei da canção, reescrevi-a com sorrisos e palavras novas:  com dores nem sempre o dia se escreve, nem sempre as casas estão tristes, nem sempre, de sombra, o dia se pinta, nem sempre a fé se perde.)


 «- Olha, Célia, podes fazer download desta canção e ouvi-la com o Bruno. Aproveita a próxima vez que forem  à Fonte da Telha. Manda-lhe uma mensagem, daquelas com imagem e som, acrescenta o texto que escrevi. É uma ideia. Talvez ele acredite nos teus sentimentos. Diz-lhe que não se pode estar sempre triste.Como a Cati Freitas. Explica-lhe Célia. Vai à luta. Sim, se te sentes confortável podes usar o top que tinhas vestido quando o conheceste. Felicidades, Célia. Fico a torcer por ti.»

domingo, 14 de julho de 2013

Uma triste história de amor.




Sei de cor algumas histórias que li, ouvi ou inventei. Outras não sei se são deste mundo, ou de outro mundo qualquer. Histórias com pessoas, dor e sangue. De pele ferida. Incuráveis. Inseparáveis: o amor e o que ama. Como uma escultura a que não se consegue tirar a forma, nem o golpe que a desenha. Um corpo sem encaixar noutro corpo. O pormenor. A diferença entre o fim feliz e a história triste. E uma linha muito ténue a separar a realidade da ficção. Escolheu Paris, a pedra, o Sena e um mestre, a bela Camille Claudel. Um talento a insinuar-se  nas primeiras histórias que adivinhou, nos corpos que esculpiu. Estudou, preparou-se e o génio foi amadurecendo. Amou o mestre, sofreu os seus desvarios. Nasceu-lhe por dentro a perfeição das obras que compunham a sua vida. Um talento raro saia-lhe da ponta dos dedos. Ficou só com a pedra e os gatos.O mestre partiu.  Sofreu o amor perdido. Preencheu o seu silêncio com histórias que inventava. De um outro mundo. Incompreensível. Invulgar e desconfortável. Vendia a beleza que desenhava na pedra. Não sobreviveu: definhava e enlouquecia.  Assombrava o talento fanático do irmão Paul e a popularidade de Rodin. Amava e odiava o seu mestre, o mundo, as pessoas. O carácter, o sofrimento e sua a arte enfraqueceram-na. Loucura e paranóia, o diagnóstico. Falava-se de esquizofrenia e em mil novecentos e treze é internada num asilo. Convive com a doença, a alienação, as chagas da alma e do corpo durante trinta anos. Morreu triste, sem amor, sem liberdade e sem o seu trabalho. Infeliz e lúcida.
 Um talento invulgar, dir-se-á mais tarde.

Esta história de loucura e genialidade cresce nos olhos de Juliette Binoche. A belíssima Juliette Binoche, o mistral e uma paisagem árida. Uma triste história de amor e O Magnificat, de Bach a tirar-nos o ar. Bruno Dumont realiza ou esculpe a infeliz e bela Camille Claudel.
  
( Camille Athnaïse Cécile Cerveaux Prosper nasceu a oito de dezembro de mil oitocentos e sessenta e quatro a escultora Camille Claudel nasceu e morreu mais tarde, por amor e por talento.)









sexta-feira, 5 de julho de 2013

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Mais do que isto, tem de ser mais do que isto.


A voz é muito quente, a noite não deixa um "rumor de asa" no ar. Vivo num assim assim. Tenho poucas palavras e um soluço atravessado. Na garganta? Não sei. Quando sair, direi.
Desgosto? Mal au coeur? Mal du siècle?
Não sei.
Amanhã. Outro dia e mais calor. Talvez o soluço saia.
Talvez . E "no silêncio desapareça". Para sempre.

( Autocarro 727, sem ar condicionado, três horas da tarde. Duas mulheres, muito jovens, com o telemóvel colado aos piercings discutiam a fatela da nova ministra e acertavam a cor do top da Berska, que levariam à festa de anos da Célia.
- Parabéns, Célia!.O verde alface fica bem com os calções de ganga e há verniz de unhas da mesma cor, em qualquer loja dos chineses. Divirtam-se. E não se esqueçam do talão de troca,  pode dar-se o caso da Célia não gostar da cor das calças, ou estar mais gorda. Ah! É verdade. Ministra das Finanças, a senhora é Ministra das Finanças e o outro da política, «o gajo » que se demitiu chama-se Paulo Portas era Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, não te apoquentes, Célia, ele também não sabe o teu nome. Boa festa. Fizeste bem em escolher as docas. Fresco. Meus de boa pinta. Parque de estacionamento. Leva algumas moedas, podes precisar. Se não for pago, tem arrumador. Sexta-feira à noite, não é?)


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Coisas de que se gosta.



    Para que servem as coisas de que gostamos muito?


    -  O dia esteve menos quente. Tive um encontro agradável e a consulta foi  reparadora . Afinal, o rapaz passou, sem negativas. Estão os dois felizes e de férias. Por enquanto, as dores abrandaram e a enxaqueca mudou de lugar. Tenho  uma carta quase escrita. Arrumei dois armários. E descobri Holly Cole numa conversa, ao som de John Coltrane, com um vendedor, bem apessoado. [...]  Que sabia aconselhar e conhecia os discos  que vendia. Conclusão: os discos de vinil têm um som mais verdadeiro, quase ao vivo. Tem um ouvido educado e faz bem o seu trabalho. Profissional. Competente. Lembrei-me do atendimento personalizado, na mercearia do Senhor António. Falta o jantar. Cheira bem. Um copo de vinho tinto [...] um bom  livro! - tagarelou a mulher. Estava alegre e ofegante.

 - Deves ter estado no cinema. E os filmes foram muito bons. Duas sessões contínuas ? Fizeste bem.   Quando ouvires as notícias, perceberás que estás num país diferente: mais pobre e mais desgovernado. Ainda bem.! Fizeste uma  coisa de que gostas muito! - respondeu-lhe o homem enquanto lhe estendia. Grave e muito sério. O jornal e o comando da televisão. 

terça-feira, 2 de julho de 2013

Parabéns, Ernestina




                                            Parabéns, Ernestina.
Há quem tenha uma melhor amiga, a tal amiga a quem se conta tudo, ouve tudo e que está lá quando é preciso. Eu não tenho uma melhor amiga, tenho as melhores amigas. Não são muitas, nem são virtuais. São verdadeiras e de Verdade. Uma das minhas melhores amigas faz hoje anos. Sei que é um pouco mais velha do que eu, um ano, dois anos? Não sei. Mas somos amigas há mais de trinta anos – desculpa dizer isto, agora, toda a gente fica a saber que não somos raparigas novas, que temos rugas, não escapámos à lei da gravidade e que meia-idade, talvez nos fique bem. Pois, minha amiga de meia-idade, a nossa amizade é inteira. Chamas-te Ernestina – «Mas quem é que se chama Ernestina?» - perguntavas tu muito desolada, eu respondia: «Tu chamas-te Ernestina e o teu nome é uma maldade!». Ríamos. Mas tinhas um apelido sonante e estrangeiro, quando te conheci: «Vês?! Já ninguém liga ao Ernestina.» Entretanto, perdeste o apelido sonante, entre outras coisas que não interessam, nem são a razão deste texto. Ficaste e serás sempre a Ernestina. A minha Ernestina. Já te reconciliaste com o nome e com a tua madrinha (foi dela que herdaste o nome, não foi?), assim como eu já me reconciliei com o meu. On s’habitue, c’est tout! Conhecemos-nos num corredor do Departamento de Literatura, à procura de uma sala de aula de uma literatura qualquer. Estávamos perdidas, não sabíamos qual era sala e, se a memória não me falha, eu estava mais aflita do que tu. Tinhas o cabelo comprido e aos caracóis muito escuros, preto-asa-de corvo (lembraste?), muito magra, os olhos a piscarem, as unhas roídas até ao sangue e uma saia indiana às flores e às cores. Um cigarro de SG filtro ardia-te entre os dedos e não tinhas contigo um único livro. Pensei logo que eras o máximo. Os meus sapatos de aplicação, a minha saia de pregas e a minha pasta de cabedal, à letras, pareceram-me sensaborões e, alguns dias depois, já estava a arrumar no fundo da gaveta o look de intelectual séria, a promessa de ser muito estudiosa e o orgulho de todos. Obrigada, Ernestina. Corria o fim da década de setenta, a Faculdade era um sítio onde todos os dias acontecia uma performance diferente, todos se conheciam e reconheciam, o Bar do rés-do-chão era a nossa sala de estar. E estávamos bem. Começámos a ser as melhores amigas, íamos a maratonas de cinema, conversávamos horas a fio sobre o sentido da vida, os meus namorados, a poesia do Zé Gomes, a filosofia de Sarte, a política, os nossos sonhos e receios, a parvoíce dos outros e, de vez em quando, Roland Barthes e Kristeva lá nos faziam companhia. Com diletância, algum estudo, idas à Biblioteca Nacional e horas de leitura, fomos tendo sucesso, tínhamos boas notas nas frequências, tu muito melhor do que eu na Linguística, eu muito melhor do que tu na Literatura, divertíamos-nos, éramos felizes (às vezes achávamos que não, chorávamos um desgosto de amor, uma nota injusta, a solidão que temíamos, o emprego que teríamos: seríamos escritoras, ou professoras? Poetas?) e fomos construindo uma grande Amizade. Sempre fomos cúmplices. Sempre rimos dos mesmos disparates. Inventámos ser mil personagens. Éramos vaidosas, de vez em quando dou comigo a pensar como é que alguém poderia ter paciência para nos aturar. Ernestina éramos umas estudantes universitárias muito estilosas, partimos alguns corações e conseguimos algumas proezas de que não me orgulho, mas que cumpriram (lembraste da ausência da metáfora?).Um dia quente de julho, reunimos uns tostões e fomos fazer uma permanente, no cabeleireiro mais barato e manhoso que encontrámos. Durante  horas  gritámos, bem alto, em plena Avenida da Liberdade: «Meu nome é Gal!». Doidas. Se algum dia escrever as minhas memórias terei muito que contar e tu, Ernestina, farás parte delas, em quase todos os capítulos. Depois, bem. Depois, cada uma de nós seguiu o seu caminho, viveu as suas novelas. Afastámos-nos. Crescemos. Casámos e descasámos. Fizeste um doutoramento. Eu fui para longe. Ernestina, a nossa amizade a tudo tem resistido. Ao tempo. Aos filhos. Às rugas. À doença. À alegria. Tens estado a meu lado desde o momento em que nos encontrámos naquele corredor do Departamento de Literatura, nos finais dos anos setenta. És uma mulher brilhante. Estudiosa. Investigadora brilhante. Fazes Palestras. Vais a Congressos. És convidada pelas melhores Universidades do mundo. És mãe. Mãe de referência para mim. A tranquilidade e a serenidade são, não raras vezes, um exemplo. Já não róis as unhas e andas a deixar de fumar. Aliás, já deixaste de fumar várias vezes. «De alguma coisa teremos de morrer, não ?»  Já me deste colo. Já me deste sermões. Já me levaste a ver o mar sem que eu nada te pedisse. Tens sempre a casa muito arrumada e tão bonita! A casa?! Não, as casas, porque já te vi construir sete? Oito casas? Na cidade, no campo, na praia. Não, não é luxo. Não és rica. Mas fazes milagres com o que encontras no lixo, ou numa loja qualquer. Depressão? Tristeza? «Bora lá, decorar uma casinha? Também podemos fazer uma festa? Ir comprar um maletini? Sim, pode ser nas lojas dos chineses». Apenas te vi triste, mesmo triste, muito triste, uma vez? Duas vezes? No entanto, tens chorado a meu lado, foste a minha família na sala  de espera num hospital e és ainda mais, o que foste desde que nos conhecemos: uma melhor amiga. Obrigada, Ernestina. Ainda rimos das mesmas coisas e sou capaz de jurar que se fôssemos ver o filme American Gigolot, perderíamos o 38, no entusiasmo da conversa. Ainda me ouves durante horas intermináveis e eu sei que não te canso, que não te peso. Dias há, que não partilho contigo as minhas dores, porque sei que passariam a ser, também, as tuas dores. Adoras os meus filhos. Estiveste, a meu lado, quando eles nasceram e sei, porque conheço o brilho do teu olhar, que também tens muito orgulho em mim. Eu sei, Ernestina, que gostas muito de mim. E, sei também que tudo serias capaz de fazer pela minha felicidade. Eu sei, Ernestina. As amigas, como nós, sentem essas coisas.
 Parabéns, Ernestina. E não nos preocupemos com a idade, é uma luta inglória e como dizem os teus filhos: Ninguém repara em nós. O que é lamentável, porque uma amizade como a nossa deveria ser celebrada, todos os dias, como uma lição.
Uma lição como aquelas que eu sei que dás aos teus alunos.
Parabéns, amiga de meia-idade, deixo-te com uma senhora que muito aprecias.
 (Quando ela vier a Portugal, iremos vê-la. As duas jovens senhoras que têm o privilégio de escrever com as mesmas letras a palavra Amizade.)

Parabéns, Ernestina.