quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ai, tu!

http://youtu.be/fHjZQb-kGek

A Kiss To Build A dream On



Ai, tu!

 Talvez cozinhe uma feijoada com arroz basmati, ficará um prato ecuménico, o que interessa é que os miúdos  comem bem o que se lhes puser no prato, estão a crescer, têm sempre fome, e perguntam tudo, a paciência não se dissolve como uma carteira de antipirético, o benuron  faz baixar a febre, mais nada,  o grito de gaivota voltou, entretanto, será preciso mudar a água às margaridas, começam a murchar e seguem os raios de sol que entram na sala, durante um ano a vida muda,  acontecem  um ror de peripécias, Odeceixe tem o mar muito azul e, apesar de, o mar não ser o mesmo, será sempre o mesmo e igual, a caixilharia em alumínio de um  quarto de pensão de terceira categoria é o sinal que  as histórias que acabam mal estão sempre a acontecer, a febre baixou, as músicas do Ipod  dos  miúdos foram tiradas do youtube, deve ser pirataria e para  que servirão  as prateleiras cheias de bela música ?! Mas isto é assim como gostar do amarelo, não  se pode obrigar os miúdos a gostarem das mesmas canções, têm bom gosto, às vezes, não é coincidente, é só  ver que há mulheres (e homens) muito sensaborões, vestidos de um castanho indefinido, agora diz-se taupe, muito  certos e com muitas linhas  no curriculum e doutoramentos em assuntos fraturantes A importância-da-isotopia- da-cidadania-na-construção-de-um–saber-multidisciplinar-integrador-de-diferentes- metas- do-saber, um fôlego para se dizer o titulo, sempre muito atentos ao próximo e a amar muito o próximo e a defender as injustiças, nunca viram uma telenovela, nem dizem palavrões, pessoas com quem nos cruzamos na rua, todos os dias, muito atentas ao livro onde mergulham os olhos, sempre de autores desconhecidos, amam tudo e dizem todas aquela verdades libertadores, deite tudo cá para fora e desabafe e ame muito, muito a vida, mas depois penso que é tudo, outra vez, como gostar do amarelo, não se podem discutir as cores que fazem bater o coração de cada um, ter uma senhora que nos ajude nas coisas da casa é um hábito burguês, há quem não goste  que  se lhes arrume as cuecas e diga que  se tirarmos a carne congelada, de véspera, do congelador e a pusermos na parte de baixo do frigorífico, irá perdendo o gelo, mas o sabor mantem-se e a Conha Buika  canta, com uma voz maravilhosa, Las Simples Cosas, quando se olha para uma gravura em tons de cinza e dourado de vários matizes e brilhos, com uma moldura também dourada, mas com um vidro igual ao que se usa nos museus, não se vê o reflexo, fica uma macha de cinza e amarelo dourado numa parede branca, a gravura fica muito bonita, em baixo está uma outra com vidro normal, representa um barco em tons de cinza transparente  e azul claro, o vidro não é o que se usa nos museus e o  barco fica menos visível e, no entanto, é um barco, podia levar-nos para qualquer lugar, uma esperança qualquer, os dois quadros são uma metáfora da vida, o dia mais triste do calendário católico apostólico romano pode ser um dia muito feliz,  num ano e de uma grande mágoa, no ano seguinte, pensemos que o dia de natal talvez venha compor as alegrias e não há como um dia atrás do outro, as idas  ao supermercado devem ser feitas com muito cuidado e uma máquina de calcular, deve verificar-se o IVA e não comprar nada que não seja necessário, as compras ficam  iguais  a algumas pessoas  - cor taupe, uma cor parda que advinha uma vida também parda, nunca se sabe o que veem em nós, a imagem que damos é a imagem que faz, quer, deseja ou ama para quem nós olha, a acreditar, acredite-se  só no espelho e, mesmo assim, devemos desconfiar, algumas lojas têm espelhos que emagrecem, na Feira Popular havia uns espelhos que olhavam para nós como formas estranhas, nos provadores da Zara há uns espelhos que adelgaçam a silhueta (um bonito conjuntinho de palavras), os sacos de papel castanho que muitas pessoas trazem nas mãos, é uma mania de antes e durante o agora, um saco nas mãos dos portugueses, os sacos Zara foram substituídos por uns mais claros que dizem Primark a letras azuis, têm  de ser muito resistentes, porque transportarão as mais variadas intimidades  e, até, o almoço, mesmo nos dias de chuva, quando chove muito, os melhores são os de plástico, na época  dos saldos, muito mais resistentes,  há ainda muitas palavras por dizer e por escrever e olhar, nesses momentos as dores ficam suspensas e ir não é nenhum sofrimento, as dores aparecem quando começamos a sentir o que nos permite ser,  mas não deverá ser sentido, o joelho dói, a cabeça dói, a alma dói, vivemos bem quando não sentimos  que o joelho a cabeça e a alma existem, há quem viva uma vida inteira com muitas dores e com pouco dinheiro e sem dinheiro nenhum, há muitas vidas, basta olhar para as paragens dos autocarros, os carros parados nos semáforos, os centros comerciais, os hospitais, há muitas vidas a ser vividas e há muito outras que desaparecem, num ápice, é tudo muito rápido, a interpretação de um texto literário não pode ser feita  à pressa, olhar para um quadro de Marc Chagall deve ser feito com os olhos mais lentos, como o desejo do corpo de quem se ama, devagar, e com os sentidos todos, os pensamentos que ocupam as cabeças das pessoas são todos diferentes uns dos outros e estão contaminados com o que cada um fez com a sua própria vida, para não se pensar nas vidas  existem os livros, ler é uma redenção, um prémio, escrever só interessa a quem escreve, no momento que escreve, entre uma afirmação e outra, há um paradoxo, o que não retira a verdade às duas afirmações.

( Eu já te tinha dito que a tua cabeça não deve servir para pensar. Tu não me dás ouvidos. Ai, tu! )

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Lou Reed - Perfect Day





(Lou Reed, Transformer, a ouvir desde 1976)

A partida para a guerra em África já não nos amedrontava, as turmas eram mistas, as salas de cinema passavam filmes novos, as ruas coloriam-se. Chegava gente de um mundo diferente do nosso. Gente feliz. Gente infeliz. E começávamos a gostar de poesia. O coração partia-se ao som da música que ouvíamos no jardim, no carro roubado ao pai, na estrada a caminho da praia e nas noites mais longas de um verão que ansiávamos desde janeiro. Andávamos em bando, vestíamos saias indianas, tínhamos o cabelo muito comprido, éramos freaks, admirámos o punk, dançámos flamenco e rock. Pulávamos da varanda para namorar, driblávamos as ordens superiores, seguíamos o exemplo dos irmãos mais velhos, olhávamos com espanto o que vinha de Londres e Amsterdão, iniciávamo-nos nos paraísos artificiais, na sangria, no desafio, no que somos e construíamos sem perceber. A liberdade via-se nas ruas, nos sonhos, nos direitos que se desenhavam iguais para todos, podíamos ser o que quiséssemos, mas o futuro era a amizade, ver nascer o sol, as tardes na praia nos dias de setembro que não tinham fim. E a música. E as vozes que ouvíamos. Estudávamos. Pouco, mas éramos curiosos e o mundo estava à nossa espera. Tínhamos missões a cumprir. Mais longe. Gostávamos de ler e procurávamo-nos nas letras das canções que ouvíamos, nos livros de poesia que trocávamos. Filhos de Torremolinos e Viagem ao Mundo da Droga também nos passaram pelas mão, perderam a capa e algumas folhas, o bando leu-o, mas aqueles universos eram uma miragem de contornos indefinidos. Irreais e perigosos. Pouco a pouco, fomos fazendo as nossas escolhas. Umas mais acertadas que outras. Morreram-nos alguns. Apareceram crianças. O bando separou-se. Creio que é o que acontece a todos os bandos que crescem juntos a ouvir a mesma canção. Tínhamos sonhos e, se as ruas da Vila eram o nosso quintal, o tempo estava noutro sítio qualquer. Crescemos. Já não andamos em bando, mas ainda sabemos uns dos outros. Passeámos pelo lado mais perigoso, fomos James Dean, pelo menos, por um dia e quaisquer que tenham sido as cidades que atravessámos, we are going to reap just what we sow.

 

Obrigada, Lou Reed.

 

( Transformer de Lou Reed, foi produzido pelo próprio e por David Bowie e  é lançado em dezembro de 1972. É o primeiro disco a solo do ex-Velvet Underground. Ainda tenho o disco em vinil. Não me lembro onde o comprei.)

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Dianne Reeves




Dianne Reeves

Dona de uma voz enorme, arrebatadora, um instrumento, mais um a entrar-nos pela pele. Boa disposição, ritmo, calor, groove e swing. Sintonia. Os músicos são uma família escolhida e falam a mesma língua. Apresentados, um a um a um, como uma cantiga. Rimos e batemos palmas. Gosta-se. Ouve-se a respiração. Partilha-se a alegria e o prazer de estar ali. Uma voz quente e de tudo a fazer uma canção - it's rainninig in the stage. In the stage, the rain. E choveu, no palco. Choveu mesmo, de verdade. Stormy Weather,  no início, assim tinha de ser. Não fazia  parte do improviso, mas ela improvisou logo ali o refrão. A gargalhada que nos contagia e trazemos para casa. Poderosa voz, elegantes de talento, os músicos, o improviso: uma boa noite de jazz. Our love is here to stay, no final, só ela e as mãos de Romero Lubambo, brasileiro do Rio, amado e companheiro de beautiful music e caipirinhaz, muitas noites, uma vida inteira, confessou-nos. Como se fôssemos íntimos. Fiquei com a voz, quando cheguei a casa, atirei: muito boa onda, um concerto com muito boa onda. Já se habituaram, não se importam de arrumar a cozinha, nem de ouvir Dianne Reeves nos próximos dias, os auscultadores, mãe, põe os auscultadores, por favor. Sou bem-mandada.  

Às vezes, uma  Beautiful Life.

Há quem compre viagens a preço da chuva, goste de marisco, vá a todas as estreias de teatro, lançamento de todos os livros, compre todos os livros.  Há quem faça yoga, sexo tântrico, saunas, puzzles, massagens em spas, viagens pelo país real. Há quem coma muitos chocolates. Nada contra. Eu vou à música. Compro o bilhete com muita antecedência. Nas primeiras filas. Plateia. A fila D é muito atrás. Vou sozinha. Triste? Não, não é. Não posso pedir a ninguém que goste da mesma canção e a queira ouvir três ou quatro meses depois. Quando vou acompanhada, o lugar é muito à frente, o lugar é muito atrás, já viste o vestido dela? Olha, repara naquele homem, não é nosso vizinho? Se calhar conheço-o da televisão e blá, blá, blá. Gosto de me concentrar e viajar até à canção de que sei letra, o ritmo que me leva para um qualquer sítio e, até, ouvir as conversas do casal ao meu lado, os miúdos que no fim assobiam, as amigas que compraram a assinatura e vão aos concertos, discutem o cabeleireiro, o filme, o livro de Saramago, quando as luzes da sala ainda se veem. Durante o concerto não existo, não tenho dores, não penso na vida, nada. Só a música e eu. Quanto baste.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Chuva






Chove.

Quando as gotas grossas da chuva caem, formam no espelho que a água derramou, uns círculos perfeitos, transparentes e repetidos. Num desenho exato que não para e não se repete. Um círculo perfeito pequeno e redondo, um círculo perfeito, cada vez maior. Uma argola pequena de água, que se espalha e desenrola numa argola maior e longe. Ajustam-se estas águas, mas não se abraçam e pingam, pingue-pingue, uma a uma, da mesma nuvem escura, disforme e cheia. Tingem-se de cores de rua: alcatrão, laranja pintado de castanho do barro que se desfaz, cinzento-escuro, prata pintada a verde. As cores do sítio onde caem. Redondas. Musicais. Quando não há vento, as gotas grossas da chuva espalham círculos perfeitos que não se tocam. Crescem. Afastam-se.

De cima, da janela que espreita a chuva, vejo o lago que tapa ou molha as solas dos sapatos. Agora, a noite apagou o céu e o brilho do rio. Os círculos perderam a perfeição e a luz. O vento veio com a noite e limpou as linhas perfeitas. Arrasta-as para outras formas, outras margens. As gotas mais longas vêm velozes e acossadas, pelos caminhos abertos entre os prédios e as varandas largas. Ruidosas. As copas das árvores e os candeeiros deixam-se ir nesta dança. Água e vento. A acompanhar a luz e a sombra, a chuva corre para o rio, rolos de folhas, papéis, plástico e troncos partidos. O ritmo mais veloz à procura do sossego da água larga e escura. Distante. À beira das luzes da cidade.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Noite





Noite

 

Resisto

porque quero ou porque

tenho

a cor

substantivo de sol

para a semente

 

Insisto

Porque penso ou  porque

sei

 

caminho mais intenso

 

ou porque vejo

 

depois do branco

a lua

a inversão do beijo

 

Maria Teresa Horta, do livro Vento coincidente (1962)

 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Assim, tão simples





( assim, tão simples)
 
 

Se Cuidas de Mim

Se cuidas de mim
Eu cuido de ti também
Dentro da minha mão
Eu guardo-te bem
Se amarmos do princípio
Se perdermos tudo outra vez
Vou marcar-te bem
Como um sonho vão
Dentro da minha mão

Se cuidas de mim
Eu cuido de ti também
Se vens em paz
Eu venho por bem
Se formos bebendo
O chão deste caminho
Vou guardar-te bem
Agora que sei
Que não vou sozinho

Há uma praia depois da sombra
Uma clareira p'ra iluminar
Há um abrigo no meio das ondas
Tu a caminho p'ra iluminar

 

                                         Tiago Bettencourt

 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Para o Rui



a tristeza é a morte lenta das coisas simples

Las Simples cosas

Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas,

lo mismo que un árbol que en tiempo de otoño se queda sin hojas.

Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas,

esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.


Uno vuelve siempre a los viejos sitios donde amó la vida,

y entonces comprende cómo están de ausentes las cosas queridas.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,

que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.


Demórate aquí, en la luz mayor de este mediodía,

donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida.

Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso,

que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.
 
Armando Tejada Gomes

 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Baseado em casos reais - Miguelito





Baseado em casos reais - Miguelito

Miguelito,

(não te importes que te trate assim, ninguém nos ouve, portanto o teu 1,85m não ficará arranhado), hoje, meu filho, falo-te por esta via. Os teus irmãos monopolizaram o Skipe, o teu pai está fechado no escritório, e eu tenho saudades das nossas conversas. Imagina, Miguelito, lá estou eu outra vez, que desde que te foste embora nunca mais tive licença para ver um daqueles documentários no Canal História, nem tenho com quem fazer teorias gerais por tudo e por nada. Não tenho grandes notícias para te dar, tu tens lido os jornais e vês os noticiários, estamos preocupados, já estávamos quando decidiste ir mudar de ares e fazer-te à vida, noutro sítio. Pensaste bem. Sou egoísta quando tenho saudades tuas. Tu estás bem. O resto foi o que deixaste – um país triste, pobre e desesperançado. Os sacrifícios são cada vez maiores, os ordenados mais escortinhados, há pouco ouvi as explicações de mais cortes nas pensões de sobrevivência, se não fosse o nosso país diria que é humor negro, o dinheiro está cada vez mais caro, diz a tua avó, o avô vocifera quando falamos ao telefone, continua a clamar, isso mesmo, adivinhaste, fui eu um oficial de abril, para ver esta cambada e por aí adiante, vocês falam quase todos dias, deves estar a par das suas queixas, temos sorte - os avós estão bem e de boa cabeça. Não queria que esta minha carta, já ninguém escreve cartas, fosse um rol de lamentações, não meu filho-mais-velho, mas está perto, olha, o nosso prédio, está tão animado que até dói, o filho do senhor Amadeu está desempregado, não pode pagar a creche, por isso, os miúdos passam o dia com os avós, ouvem-se, outra vez, crianças no prédio, a Dª Fátima é que não se conforma, depois de tantas privações e trabalhos tem os dois filhos em casa, tudo isto deixa o teu pai muito acabrunhado e dedica-se, cada vez mais, ao trabalho, compreendo-o, não tenho é ninguém para conversar, não quer sair de casa, e há meses que não vamos ao teatro…enfim, nada que tu não conheças. O teu irmão Paulo passeia a tua Tata, trata-lhe do pelo e é ele que se ocupa da ração, assim tenho menos saudades do mano, é o que ele diz, mas no outro dia tive de esconder a chave do teu quarto, porque andava a tirar fotografias à tua bateria, estás a ver para quê? Não estás? O inter-rail, o inter-rail e não se cala com os itinerários, abre mapas, espalha-os no chão, e passa mais horas no Google do que a estudar. Ele e a Tata, a Tata e ele, parecem-me felizes, divertem-se e a tua Tata ladra quando ele imita as gaivotas. A Teresa enche a sala de amigas e roupa fashion (será uma boa economista, apesar do corte na semanada, o quarto dela continua ser uma sucursal da Bershka), o pai diz que quando ela não está  a dormir, passeia as minissaias e fala ao telemóvel. A menina do papá continua muito engraçada, alegre, está fazer-se uma bonita mulher, nos dias mais felizes o teu pai diz que ela é parecida comigo, mas a tua cabeça era melhor e gostavas de ler, ela toda caracóis, olhos e gloss, vai para a escola passear, sem azia, mãe, os stôres ainda não marcaram os testes, tomara já que o mano venha de férias, porque não vou a Santos desde o verão. Estamos todos nas nossas vidas e só esta semana as temperaturas começaram a baixar, tu sabes como eu odeio o calor… As flores murcham numa semana. Tenho muitas turmas, muitos alunos, horas intermináveis na escola, reuniões, papéis, decretos-lei, diretores, matérias  para preparar, testes, metas curriculares, coisas que não te interessam, sabes que não sou de me queixar, mas estou, ou melhor, estamos todos fartos do Crato, ainda há horários sem professores e professores sem horário. Triste, muito triste. Tenho medo de não me reconhecer. Os miúdos são o reflexo do que se passa em casa, os dias para eles são sempre iguais e a escansão das sílabas métricas ou o estudo dos advérbios de predicado é-lhes tão estrangeiro e distante como Harare ou Vancouver (lembraste quando jogávamos scrabble e às cidades desconhecidas?). O tempo passa tão depressa, eu para aqui a falar, a falar, como é meu hábito, eu sei, não me ouvem, à terceira frase já desligaram, ou interromperam a perguntar o que era o jantar, o significado de uma palavra difícil, o paradeiro dos ténis (como se os ténis andassem sozinhos!). Talvez esta conversa te inspire e me escrevas uma carta, destas, sem selo, a contar de ti, dos teus amigos, do teu dia, das namoradas???? Tens comido bem? Andas bem agasalhado? Tens ido ao cinema? Precisas de dinheiro? Como tens de gerir muito bem o teu dinheiro….Continuas a gostar do trabalho? Organizas-te com as aulas na Faculdade? Tanta pergunta, mãe! O coração tão apertado de mãe é assim para o secante e nós não são somos nenhuns bebés. Para mim, serão sempre!  É a minha condição – tiveram azar, para além de mãe sou um ser humano e mulher. Pois, como tu costumas dizer se um elefante incomoda muita gente, uma mãe incomoda muito mais. Não gosto da comparação, mas talvez tenhas razão. Adoro-te meu príncipe-mais-velho.

Juízo, ouviste?

Beijos meus. O pai pede-te que lhe telefones, (a pagar no destino, sim, claro), os teus irmãos pensam muito em ti e a Tata já está menos chorosa – pudera, o teu irmão não lhe dá paz .

Mais beijos da mãe, daqueles repenicados à tia Custódia, ela gostava tanto de ti.

Beijos. Beijos

Os teus irmãos fartam-se de gozar comigo, porque entre um livro e outro passeio no FaceBook, mas não somos amigos – era só o que faltava!

(Gostaste da música que escolhi?)

 

 

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Baseado em casos reais.




Baseado em casos reais 

No bairro onde moro, pacato e virado para o Tejo, não há muito movimento, há poucos cafés, jacarandás ao longo das ruas, cães asseados, crianças a jogar à bola e adolescentes a fumar às escondidas. No meu bairro vivia-se bem e a vidinha, arranjadinha e com ar puro, era soalheira e pacata. Um bom lugar para viver. Com Tejo e o horizonte até à Trafaria. Tudo certo e familiar, quase íntimo. Um dia um supermercado luxuoso, estrangeiro e normalizado instalou-se duas ruas a baixo da minha. Salamaleques e copos de Porto na inauguração, meninos e meninas fardados a rigor, consumo à europeia a ensombrar a vida às pequenas mercearias, ao “lugar” da fruta, à papelaria e ao quiosque. O nome sonante ocupou o bairro e impôs as vaidades e o queijo importado. Civilizado e clean. A vida do bairro mudou. Queixa-se o senhor Zé, o senhor Paulo, a Dª Rosa, o senhor Fernando, enfim, todos os senhores, que nas últimas décadas sustentaram e alimentaram  - e bem ! - este bairro com rio e sossego.  Eu continuo a preferir escolher a fruta, encomendar a carne, discutir o calor fora de época, as misérias do treinador mal comportado, isto é, descer a rua, encontrar as caras que sempre me trataram bem, viram crescer os meus filhos e com muito carinho me tratam por menina, apesar de nunca me terem conhecido menina. Vou aquele café e compro o jornal no mesmo quiosque desde que moro no meu bairro.  Às vezes, vou à pastelaria dos bolos de chocolate, ou à padaria que também vende café, ao balcão está a Dª Lurdes que pergunta a toda a gente, como uma saudação: “Está melhorzinha?” Respondemos com alegria, a bica é bem tirada e a simpatia dispensa o açúcar ou o adoçante. O quiosque pertence a uma simpática família. Um casal, dois filhos, estudados e trabalhadores. Estão sempre dispostos, vendem cromos da bola, imprensa estrangeira, tabaco, lotaria, euro-milhões, bilhetes de autocarro, fósforos grandes e pensos- rápidos. Eu gosto deste quiosque e desta família. São gente do bem. Um dia destes, enquanto folheava uma revista de moda, “Veja à vontade, as fotografias são muito boas e ver não estraga”, observo a chegada de um homem alto, fato completo, cinzento e barrigudo,  tresandava a perfume caro. Altivo:  “_ Tens o (?!) Economist? Sabes o que é? É uma revista estrangeira muito importante, de Economia? Em inglês? Estás a perceber? –“ Sim, conheço muito bem. Tenho um doutoramento em Economia, numa área muito específica de que nunca deve ter ouvido falar. Lamento, mas vendi o último há pouco. “ Vi os olhos brilharem-lhe quando respondeu :“ Já não tenho nenhum exemplar do The Economist “. Articulou na perfeição o título. O homem baixou a cabeça. Desdenhoso. Encolheu a arrogância e virou as costas. Ficámos uns momentos, a olhar uma para a outra, sorriso entreaberto e coração apertado. Os olhos ainda lhe brilhavam quando recebi o troco. Em silêncio. Arrumou as revistas, guardou o dinheiro, inclinou-se e debaixo da bancada tirou um exemplar -  “ Não me apeteceu vender-lha. Trata-me sempre por tu e é muito emproado. Não fico mais pobre e talvez ele perceba…Talvez não. Estou cansada de enviar currículos e responder a anúncios. Boa tarde, professora. Volte sempre”  

 Minutos depois, entrei em casa, poisei na bancada da cozinha as peras e o pão e olhei para o Tejo que entretanto ficara cinzento e baço.

sábado, 12 de outubro de 2013

Conforto



CONFORTO

Abre a porta do roupeiro, passa as mão pelos casacos, pelas saias, pelas calças. Descobre em cada peça uma diferença, um lugar, os cheiros. Agora não lhe apetecem as memórias, nem as calças dois números acima, nem a camisola de gola alta preta. A gola do frio, do outono, do conforto. Poderemos nós mudar o conforto? Nunca tinha pensado nisso. Claro, mudamos tanta coisa. Mudamos a cor da roupa interior, o lugar dos quadros, a lista do supermercado, também podemos mudar o conforto, A gola preta ponho-a  num  saco. Já  não me  serve. A cor preta?! Bem a cor preta ainda é um conforto e um hábito. Serena-me, não por a minha alma ser escura, como me dizem, mas porque a cor  preta é  uma segunda pele. A analogia é barata e pouco erudita, mas que diabo, estou só a escolher roupa. A mudança do conforto está a ganhar forma. Passou, mais uma vez, a mão pelas cores penduradas e encostada ao tempo e a um par de calças voou até há uma vida atrás. A maldita memória a empurrá-la, a tentá-la. Viu-se num alvoroço. A passear, olhos brilhantes e pele arrepiada, a rotina banal. Sorridente. A fé no outono. Sem sombras. Sem interrupções. Tudo a acontecer tão depressa, as palavras doces, a poesia, o fundo dos copos. - “Os copos são outros e no fundo dizem Ikea”. A tentadora memória bem-humorada! As palavras de Gedeão “Pensar em ti é coisa delicada./É um diluir de tinta espessa e farta/é o passá-la em finíssima aguada/com um pincel de marta.[…]” O eco ali a mexer nas suas coisas. Tudo misturado. Saberão os poetas o que fazemos com as suas palavras? Estava difícil a escolha. Sabia que teria de vestir uma coisa qualquer. Quente. Preto - as outras cores estavam muito largas. O tempo, a piscar no relógio da mesa- de-cabeceira, avisava-a que tinha de se despachar. Cumprir horários também era um conforto. Ficaria assim. Não gostava de chegar atrasada, preferia esperar. Era uma maneira de dar forma à expectativa. Um tempo seu: ninguém precisava de saber as lutas que travava naqueles minutos que antecipavam as horas, em ponto. Dizia sempre, em ponto. E não me veem chegar. Olha para a prateleira das camisolas, arrumadas por espessuras, mais simples, teria de ser mais grossa um bocadinho. O outono chegara e trouxera aquele frio que apetecia. Ficaria assim. Autumn Leaves ou Les Feuilles Mortes, tanto faz. Era bonito e ela gostava. Ouvia as versões todas. Ouvira-as na outra vida e continuaria a ouvi-las. Há coisas que nunca deito fora. Estão certas. Uma canção, um par de calças (36 a cinzento na etiqueta, pois),uma camisola às riscas e o conforto estava quase escolhido. Teria de limpar o cotão que se acumulara, arrumar as saias. Bem. Só faltava deitar fora algumas memórias: não eram boas, nem más, não as queria, e pronto!” Não contes do meu vestido…”, a poesia era sua e assentava-lhe bem. À justa. Não encolhia, nem alargava. Só penso em parvoíces. Estava guardada. As interrupções não lhe pertenciam, também não estavam na lista e, assim como, na saúde e na doença, tinham vindo sem aviso. O espelho está no mesmo sítio, a imagem - quero lá saber da imagem – estou um bocadinho mais confortável e não quero chegar atrasada. Eu disse 22 isso, dez da noite. Em ponto. Hoje mudei-me um bocadinho.

 

“Não contes/ do meu vestido[…]” são dois versos do poema Segredo de Maria Tresa Horta

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O Nobel da Literatura, pois então?

Elfried Jelinek
A autora que recusou o prémio Nobel da literatura em 2004 - ela lá terá tido  as suas razões!
Dos livros que li de Elfried Jelinek o mais perturbador e, por isso, o que mais gostei foi A Pianista. Aconselho - se me permitem -  a sua leitura.
 Não conheço a obra de Alice Munro e hoje, depois de uma peregrinação pelas principais livrarias da cidade, não consegui encontrar nenhum livro desta autora  disponível. Nem 'unzinho'. Estou cheia de curiosidade. Muito curiosa. Sobretudo se pensarmos que o Nobel da Literatura foi apenas atribuído a treze mulheres. Treze mulheres. Parece-me pouco, muito pouco. Porque será?
Depois de ler Alice Munro, direi alguma coisa, está combinado.
 
(Foi-me dito que a editora estava a fazer a reposição nas livrarias de todos os seus  livros publicados em Portugal. Fico a aguardar. Traduzido, de preferência)

Life is complicated - part two. Como nos fimes.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

Momentos






(-Farei o que me disse, Doutora. Tomar os medicamentos, transformar a adversidade em alegria. Repetir as análises. Claro, a felicidade é um estado de espírito, uma intenção. Uma vontade. O amor é um sentimento muito frágil, tem razão. Obrigada e até à próxima. Daqui a um mês?! Sim. Boa tarde. Não preciso de agradecer, eu sei. É o hábito.)

 

Entardecia.

O céu de um azul desbotado pelo laranja encarniçado do rasto que o sol deixara. Nenhum amarelo. Quente. Uma aguarela de azul misturado com verde. Laranja a misturar encarnado. Sem traço, nem margens. Cheio da luz e da água, que vem do Tejo. Corria pela cidade uma tépida aragem, o cinzento do fumo queimado, o outubro sem outono e a vontade de regressar. As janelas,  distantes e altas,  dos prédios a roçar o horizonte, percebia-se a rotina de sempre. Irregulares, traços de luz vermelha e amarela fugiam em sentido contrário. Riscos de luz que,  por momentos, me distraíram. Reparo na lua. Mentirosa, brilhante e recortada no céu que escurece. Um azul mais denso e sereno a receber a noite. Chego a casa, esqueço a cidade, o movimento e as cores. Fecho a porta. Dois abraços e aqueço a sopa. Amanhã, outro dia quente e soalheiro - estava escrito no céu.

 

sábado, 5 de outubro de 2013

Coisas de gaja





Coisas de gaja.

Só as mulheres percebem as dores das outras mulheres. As dores que vêm do fundo, do buraco. De um vazio e da tristeza de não se saber viver assim. Apanham os cacos, encontram-nos. Põe-nos no lugar. Encaixam as peças que se soltam, como se de um grande puzzle se tratasse, daqueles muito difíceis, com vários tons da mesma cor, céus intermináveis, castelos, caras com rugas, pestanas e tudo. Percebem as lágrimas, os soluços. Sem pudor, sem vergonha. Revezam-se para tomar conta dos filhos, das angústias, da lista das compras, das casas, umas das outras. Não precisam de pedir licença para entrar. Já lá estão. Sempre estiveram. Ou acabaram de chegar. Advinham o desgosto, a perda, a solidão, a crueldade dos filhos, a adversidade. O luto. Percebem tudo. Unem-se. Encontram-se nas vontades. Dão-se umas às outras. Amizades de uma vida inteira, ou amizade de várias vidas. Ou não. Acertam as deixas. Cúmplices, sabem os textos de cor, aconselham a cor dos sapatos e a desculpa. Zangam-se e dão colo. Acabam as frases, ensaiam juntas as queixas. Calculam o passo seguinte, mostram, partilham e dão as mãos. Fazem promessas às santas da sua devoção. E cumprem. Guardam segredos. Não pedem troco. Emprestam os melhores vestidos, a carteira para as festas, as gargalhadas. Brilham-lhes os olhos de alegria, ou de água, o que for, o que tiver de ser. Respeitam-se e defendem-se. Acodem aos pedidos de socorro. Do salto partido ao verniz das unhas. São coisas só delas. Coisas que só elas sabem: coisas de gaja.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O vestido de noiva amarelo.

Pablo Picasso, Bride,1969


O Vestido de noiva amarelo




Sou do amarelo solar e brilhante como todas as  flores que se soltam na primavera. Sou do amarelo e caso no  domingo. No próximo domingo. Escolhi o domingo, porque é o dia da semana  de que mais gosto. Não tenho a melancolia dos domingos e só fico triste, o que é muito raro, quando tenho de olhar para um dia sem sol. Às vezes, acontece, mas mesmo nos dias cinzentos da estação do ano mais dourada, o sol espreita por trás de uma  nuvem qualquer. Quando era uma criança insuportável, passeava todos os domingos,  de mão dada, com o meu pai. Lembro-me do seu sorriso claro, das mãos grandes e dos dedos amarelos da nicotina. Ouvia dizer que os dedos manchados pelo fumo dos cigarros era mau sinal. Doentio e sujo. Eu não me importava, eram os dedos do meu pai, por isso, podiam estar amarelos. Eu sou do amarelo. E caso no  domingo. Rosas amarelas, uma mesa cheia de pão-de-ló e copos delicados com uma risca muito fininha de ouro vivo. Também gosto do champanhe, porque é amarelo. Sim. Mais claro, quase transparente, mas amarelo, ou melhor, amarelinho e faz cócegas no céu da boca. Terei tudo isso. E um vestido amarelo. Tenho sonhado com um vestido de noiva amarelo. Não quero branco. Eu sou diferente: sou do amarelo. Sonhei com um decote que deixasse de fora os ombros e mais nada. Um vestido com um decote em forma de lua deitada, muito justo na cintura, e a tapar metade dos joelhos, sem botões nas costas e uma saia rodada desde a anca até  à bainha. Sonho com este vestido todas as noites. Sempre sonhei comigo de vestido amarelo, alegre, vistoso e envergonhado, ao mesmo tempo.Magnético. Confortável. Esplendoroso. Caso no domingo e ainda não tenho o meu vestido amarelo. Procurei em lojas chiques, em lojas pequenas de vão de escada, em lojas hippies, em lojas com montras altas  e em lojas de vestidos de todas as cores. Tenho andado à chuva pelas avenidas da cidade. Molhada. Às voltas. A entrar e a sair. A vestir e a despir. Insisto no amarelo. No sol. Esplendoroso. Magnético. O vestido para a noiva que serei eu no próximo domingo. Corro atrás do metro, da hora de ponta, do autocarro e ao taxista pedi que me levasse à rua das lojas dos vestidos amarelos. ‘Essa rua não existe, menina’. Insisto. Tem de haver uma rua de lojas que vendam vestidos amarelos. ‘Só amarelos, menina?’ Sim, respondo. E engulo um nó. Caso domingo, dia de sol e de vestidos simples e esplêndidos. Amarelos. E se não encontrar o meu vestido? O vestido dos meus sonhos. Talvez não o encontre. Nunca. Casarei no domingo com um vestido de outra cor. Sim. Sentirei a falta do meu vestido amarelo. Mas vou fazer de conta que o decote é em forma de lua deitada e amarela. Assim será como se o tivesse – o meu vestido. À minha medida e da cor que me pertence. Farei de conta que casei com o meu vestido. Aquele vestido que era meu. Talvez a vida seja isto. Viver com o que tanta falta nos faz. Nem que seja um vestido amarelo.

 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A propósito do dia Mundial da Música.



 
 
 
Para  mim, a  Música  começou aqui: Concertos para Juventude de  Leonard Bernstein. A preto e branco, na Rádio Televisão Portuguesa. Há muito tempo e em  pequenas doses. Sustinha a respiração e a pouco e pouco  deixava que cada acorde se dissolvesse  no palato, no ar, na ponta dos dedos e, gulosa ( mais do que pelos caramelos que na época se compravam em Ayamonte) esperava pela lição seguinte. Entre uma e outra, procurava o sentido das palavras do maestro, nas árvores, no caminho para escola, nos livros que lia, no céu, nas nuvens e até  nas notas que se soltavam, aos soluços da caixa castanha e amarela de botões salientes e redondos. Muito cedo aprendi a diferença entre música e ruído e a desenhar uma clave de sol. Não sei cantar, não toco nenhum instrumento musical, mas oiço com o coração a música que Bernstein me ensinou a conhecer.

Obrigada, maestro!

 
 
 
 

Se o Outono...

Tamara de Lempicka, A Harbor in the Moonlight, 1924 (?)









Se o Outono
fosse o cheiro de frutos
na memória
 
e os frutos
a calma dos sentidos
 
o nosso rosto com
ou néon
pelos cabelos
seria um retrato de mágoa
olhando o chão

 

                                                   António Reis, Poemas Quotidianos,1967