terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma fotografia a preto e branco.

Fotografia de Cartier Bresson




                                              Uma fotografia a preto e branco



Talvez fosse um dia de primavera, soalheiro, o céu muito azul, faria sentido muita luz na rua, preciso de um dia assim para dizer a penumbra da fotografia a preto e branco. Faria sentido um dia luminoso e um céu azul, de nuvens muito brancas. A luz a entrar pela sala. Faria sentido o dia de primavera. Sim, lembro-me do brilho das folhas verdes na floreira de madeira. Num dia de sol. Lembro-me da mesa grande da sala e da toalha branca, lembro-me do prato das farófias desenhadas a canela, as guloseimas enroladas em papel vegetal, os bolinhos de cenoura, as garrafinhas redondinhas de Laranjina C, o pudim com o açúcar queimado, a travessa com o pão cortado em triângulos, o queijo, o fiambre e os palitos com uma florzinha na ponta, a travessa de vidro amarelo, os pastéis de bacalhau e o bolo de dois andares, pintado de branco e castanho. As velinhas eram oito, cor-de-rosa, suportadas por um lacinho de plástico branco, na cobertura luzidia de um chocolate guloso de sujar os dedos. A mesa estava muito bonita, lembro-me do cheiro a açúcar e da mão da mãe a enxotar as moscas. Ao longo da parede branca de cal e teto baixo, o pai arrumara as cadeiras, os bancos. Trouxe do escritório uns bancos para que todas se pudessem sentar. A cadeira de braços é para a professora, ou para uma mãe que chegue entretanto. Ainda temos o banco do quarto, mas talvez fique a destoar. Destoar, era uma palavra que a minha mãe dizia quando insistia na cor de uma camisola ou de uma saia. Ali nada destoava e os copos com rebordo dourado compunham as flores do vidro transparente. Estava tudo em ordem, lavado e igualzinho a outras mesas das festas de outras meninas como nós. Nada destoava. Eu esperava que o lanche começasse, queria apagar as velas de mão dada com a minha nova amiga, ir brincar para o quintal. Tinha chegado a horas, o presente tinha agradado a todos e o papel colorido resistira à ansiedade das minhas mãos. Esperámos uma hora. A Belinha se calhar enganou-se nas horas. Terás explicado bem o caminho? Disseste à tua professora que podiam vir todas as meninas? Convidaste a professora? Se calhar como és nova na sala não perceberam bem o convite. Esperámos duas horas, a mãe, muito nervosa, conversava com o pai na cozinha, eu e a Belinha sentámo-nos em todas as cadeiras, comemos as bolinhas prateadas do bolo de dois andares, abrimos e fechámos várias vezes a porta da rua, espreitámos as fotografias das paredes no quarto dos pais, lemos e cantámos as canções que tínhamos ensaiado, olhámos através de todas as janelas, brincámos às escondidas. Esperámos mais uma hora, continuávamos à volta da mesa. Eu a Belinha e os pais. Quando a mãe me ofereceu um rebuçado enrolado em papel vegetal, a Belinha abriu muito os olhos entristecidos, deu-me a mão e num tom infeliz, límpido, respirou: Vamos apagar as velas, porque já é muito tarde e eu preciso de saber a tabuada dos sete. Ainda sinto o frio daquele olhar desencantado, de vidro, a penumbra fria daquela fotografia a preto e branco. Naquele momento não percebi por que não viera ninguém, não percebi o abandono, o afastamento. Nem a professora viera comer uma fatia de bolo, como era seu hábito, nas festas das suas queridas meninas.


Éramos umas miúdas de bibe branco, cópias rascunhadas, contas em papel quadriculado, prova dos nove, ao lado, difíceis de entender e o livro de capa dura  com um menino a erguer a bandeira da nação, de sorriso incompreensível, apoiado num pé só. Éramos miúdas e eu sem as mezinhas do padre-nosso entendia a amizade nos gestos, abraços, bonecos-surpresa com brilhantes e partilhas: nada sabia de festas de anos sem amigas. Sem alegria. Sem festa.


Eu e a Belinha continuámos amigas e recordo-me de termos apagado as velas azuis do meu bolo de anos, uns meses depois. Não me lembro de outras festas de anos com a Belinha, porque no ano seguinte mudei de escola. Talvez, ainda tenha guardada nalguma gaveta a fotografia a preto e branco.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

"Não contem a vidinha", dizia o O'Neill





“Não contem a vidinha”, dizia o O’Neill (continuação).

 Ela e ele despediam-se. A mulher do quarto ao lado não gemia. Não se ouvia a chuva. Entretidos com as suas próprias vidas, deixaram que a noite passasse. O sol nasceria em seguida. Teriam de se separar e correr para o dia. A custo. Abraçaram-se. Fecharam a porta. Sorriram um para o outro, acenaram o adeus. Ela dirigiu-se para o carro, a manhã chegava. O tempo era uma falsa medida. Pensaria o tempo, quando se encontrassem. Quando se encontrassem?!

Poesia, os clássicos, os romancistas russos, o jazz, a natureza, uma receita de sopa, pintura, rádio, televisão, política, os filhos, as filhas, o desencanto, a mágoa, tudo se confundira ao longo da noite. O amor às palavras estava-lhes no sangue, na pele. Não se lembrava se ele gostava de jazz, nem nunca o ouvira falar de poesia. Cresceu. Pensou. Todos crescemos, de uma maneira ou de outra. Percebeu as diferenças: como tinham tido vidas tão desiguais, tão distantes. Da sua vida, ele contara pouco. Mas ela compreendeu o sucesso. As viagens. Os projetos. Gosta do que faz. Leu-lhe a felicidade nos olhos, quando falava. Percebeu o mundo diferente em que viviam. Ela, mais faladora, contou-lhe os nascimentos, a mágoa que lhe fazia tremer a voz, os escritos que deixara a meio. Os caminhos que os seus passos seguiram. Se calhar, é assim com todas as mulheres: trocar a sua vida pela dos outros, sem arrependimento. Sentiu o abismo. A diferença - o mundo que lhes coubera. Lembrou-se que teria de passar por casa para mudar de roupa. Abrir as janelas, arrumar a pasta. Aproximou-se de casa com o coração mudo. As mãos húmidas escorregavam no volante. Sting afinava o refrão. “The shape of my heart”. Ela sorriu. Sting tinha sempre razão! Quando entrou em casa, sentiu um cheiro a casa vazia, que se lhe colou à pele. Estranhou: a sua casa cheirava sempre. E, foi no momento em que fechou a porta, que aquela sombra lhe apertou a mão e a abraçou. Voltara, de repente. Voltara. Ajudou-a a vestir-se, a arrumar os papéis. Abriram as janelas. Começariam juntas um novo dia.

 

 





 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A imagem




A  imagem

  E, um dia passou, por mim, a tua imagem. Não era uma visão, nem tão pouco um reflexo da vontade que poderia ter de te ver, nem uma sombra, névoa, ou o contorno do teu corpo. Não. Era a tua imagem, poderias ser tu com a forma de outra pessoa, outro homem, um outro, mas não. Tenho a certeza: eras tu. Era o teu rosto moreno, o teu cabelo quase cinzento, o teu corpo masculino e retangular. Maciço. Reconheci-te pelo andar, pela rapidez do passo curto, pela cor do casaco. Tu passaste por mim. Passámos um pelo outro, a tua imagem a passar a meu lado. Cruzámo-nos. Tenho a certeza. Indiferentes. Eu subia. Tu descias a mesma rua. Sentidos opostos. Talvez, o mesmo propósito. Não falámos. O olhar que trocámos foi muito breve e sem alvoroço. Seguíamos um caminho. Nem um estremecimento me assaltou, quando, ao de leve, os nossos corpos ficaram lado a lado. Percebi no olhar que trocámos, que éramos apenas a imagem. Um do outro. Mais à frente, num suspiro que deixei escapar, percebi que tinha arrumado, bem engomado e dobrado, um bocado da minha vida. Não sei o que foi feito de ti, nem onde me arrumaste. Já não me pesa. Vi-te com saúde. Assobiavas. Pelo brilho que, por instantes, adivinhei, nos teus olhos, percebi que não estarias sozinho. Eu seguia sem pressa e, ao mesmo tempo, organizava, com rigor, na minha memória os momentos, as luzes, as cores, os cheiros e os sabores, que nos distinguiam um do outro. Únicas e transparentes. Mas imagens. Na memória, onde, apenas, como imagens, existíamos.  

 


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A água suja num balde de plástico.






Ouve com atenção….

 Não há nada de novo. Nada que não saibas. A lua vai veloz para cheia. As crianças já não gostam que lhes apertes os sapatos e por muito que penses nos assuntos nada ficará diferente. Agora, debruças-te com muito esforço, porque a tua força já não é a de outros tempos e torces a esfregona e voltas a torcer, apoias-te no cabo, insistes o peso do corpo. A água começa a aparecer muito escura, muito feia, muito espessa. Arrasta o sujo do chão, os pelos do gato, a ansiedade do cão, os restos do jantar. Nada ficará diferente e, no entanto, será apenas um chão que ficará mais limpo, não te iludas: a vida ficará igual. Podes ter a intenção de mudar, pensar que no outro lado da rua há um fim e um recomeço. Mas não. Se pisares o chão que acabaste de lavar. Amanhã. Se o pisares amanhã, mesmo que a água seja outra, será sempre a mesma, porque entre um segundo e outro, um pisar de chão, um suspiro, um desejo, um copo de vinho, a cor da água muito suja não mudará. Será água suja e serão os mesmos pelos de gato, se tiveres gato, a mesma ansiedade de cão, se tiveres cão. O que resta então? O que fica? O que esperas da água de uma rua? E de uma esfregona bem espremida?

Ouve com atenção….

A água suja do balde de plástico da cor que escolheste irá pela pia abaixo, para o mar, para dentro de outros baldes, outras águas, mas continuará a ser uma água muito suja de uma esfregona que torceste com o peso do teu corpo todo, num só esforço, um só movimento a apertar  a força  das mãos para limpar o chão que pisas, um dia atrás do outro. Nem bem, nem mal, apenas isso: água escura. O chão que pisas. O chão que pisas. O chão e as solas dos sapatos por baixo do peso do corpo que carregas. Um dia atrás do outro.

Ouve com atenção...

 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

domingo, 5 de janeiro de 2014

Desta margem

SMS

Já te tinha dito. Quando for grande quero ser como tu.
Boa viagem.
Beijinhos.

 (As luzes da cidade e as estrelas brilhavam na outra margem do rio.)




sábado, 4 de janeiro de 2014

Uma nódoa de molho amarelo na camisa de seda encarnada.



Uma nódoa de molho amarelo na camisa de seda encarnada.

Engoliram o jantar com os vagares da conversa que prometia mais histórias, as coisas das suas vidinhas e das vidas de cada uma. Acrescentavam um desastre, um desaire, os desencontros, a infelicidade e as escolhas. Cada uma fizera as suas. Os segredos guardavam-nos para si. Veio o café e dividiram a conta do jantar. Chovia uma morrinha, riram-se da palavra  morrinha,  da rua deserta e do espetáculo do dia anterior. Sentemo-nos um bocadinho na esplanada, estaremos abrigadas debaixo das sombrinhas de agosto. Dois chás de tília e um de cidreira. Ainda um cigarro, mais um plano e a certeza de que voltariam um dia destes. Riam muito dos disparates que diziam há uns anos ríamos mais, sentes-te bem?Ainda tens dores? Não tens medo? Não pensas muito nisso, pois não? Calculava que lhe fizessem essas perguntas, respondeu que não, não se sentia doente, não tinha medo e não pensava muito no assunto. Mentira-lhes. Era um daqueles segredos que não se dizem em voz alta. Agora, estou mais vaidosa. Sim. Ainda mais. Sim. Escolhera ser mais vaidosa, também podemos escolher estar feliz, alegre. É mais fácil que deixar de fumar? É igual. São escolhas. Ilusões. Deixar de fumar não é uma ilusão. Não me digas que se deixares de fumar não adoeces? Deixas de fumar e ficas imune a todas as doenças!? Ilusões, amiga. Riram, um riso mais crescido. Ajuizado. Lúcido. O chá arrefecera. Começou a chover, já não é morrinha. Rodaram o lugar das cadeiras, aproximaram-se da mesa, há muito bom cinema francês. O último que vi é uma história de amor entre... Não contes, por favor, esse ainda não vi. Queres que te leve a casa? Está a chover muito, tenho ali o carro. Vou a pé. Obrigada. Trouxe o guarda-chuva do meu pai. A casa não é longe. Despediram-se. A praça estava deserta e o café ficaria vazio. Telefono-te no dia dos teus anos. Durmam bem, sonhem com o príncipe encantado. Ilusões. Só ilusões. Estás a ver a camisa não ficou manchada. O açafrão era chinês. Riram-seQuando mudei de passeio, as gargalhadas ainda se ouviam, agora, mais soltas, mais distantes. Éramos só três, que pena. Se não fosse a chuva, seria uma noite de primavera. Morna. Como a vida. O dia de hoje.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Passagem de ano.





A passagem de ano.



Já fui miúda e sonhadora. Vaidosa, a deixar que  a tarde decidisse o  vestido preto, muito decotado, os sapatos a condizer com os diálogos. Sonhava com o trinta e um de Dezembro e o almoço do primeiro dia do ano só era importante, porque me era imposto pela toalha branca, a promessa da família reunida e a obediência às regras de quem tem uma família grande e um avô exigente. Não havia sofrimento, nem vontade de transgredir, chegava-se à hora certa, dormir ficaria para mais tarde. E dançar era condição para se ser feliz durante o ano que se encetava. Outras noites houve em que as calças de ganga e não cumprir o compasso certo das danças de salão era o preceito a seguir. Na noite da passagem de ano tudo fazia sentido e nada se podia adiar. Nem mesmo a esperança. Eu gostava, nós gostávamos. Estivéssemos na terra que nos pertencia, na terra que se escolhia, na terra onde se começara a trabalhar, na terra que nos tinha sido prometida para o resto da vida. A passagem das doze badaladas desenhava-se  e a esperança ia sendo renovada nas passas de uva, nas taças de champanhe, no salto para cima da cadeira mais alta. Uma noite de passagem de ano gastei a sola de uns sapatos a dançar, numa outra, uma amiga jurou que nunca seria mãe - e cumpriu -, comemorei o nascimento do novo ano num hospital e, uma outra vez, no mar, longe, muito longe. Agora, dizem-me que perdi o viço, porque não me emociono com a festa e conto os minutos para poder arrumar a cozinha. Dizemos uns aos outros que o ano que começou será igual ao que passou, não temos grandes expectativas e ninguém levará a mal se não comermos as doze passas que no pacote de meio quilo irão criar bolor e ranço, ao longo do ano. Não gosto de passas de uva e nunca consegui comê-las ao ritmo do relógio. Desejo que o próximo ano seja um bom ano para todos, será duro, o dinheiro está caro, os meus pais  com muita idade, os miúdos começarão a gostar das festas, as hormonas ainda lhes darão alguns pontos negros e eu continuarei a ser chata. Não tenho sonhos impossíveis por realizar, nem mágoas sofridas por arrumar. Não quero ir a nenhum lugar inacessível, não preciso de um tecto para morar,  não acredito em milagres, tenho  livros para ler que  não cabem nas passagens de ano a que terei de me apresentar, o tempo não me tem tratado mal e apesar de uma ou outra dor, por carácter, não tenho medos. Nem medo. Em  2014 envelhecerei um pouco mais, a lista do que ainda tenho para fazer será cada vez mais longa. Terei de alterar as prioridades e pouco mais, aliás, pouco mais haverá a fazer. 2013 foi um ano difícil?! Foi, foi muito difícil. E tive direito a tudo que um ano difícil tem para  oferecer, convém não esquecer que  o próximo ano poderá ser muito pior. Quem sabe? A frase seguinte não se iniciará com um mas e tão pouco irei ler as promessas da Maya, nem o oráculo de Bellini. Recebi o ano sem passas, nem Murganheira, minutos depois da meia-noite liguei aos meus filhos, desejei-lhes um feliz ano novo, a resposta poderia ter sido mais inteligente: o ano será o que dele fizermos, pensei que se estavam a esquecer de qualquer coisa, não lhes disse muito mais. Claro, estão cheios de razão o tempo ainda tem muito para lhes ensinar, mas isso terão de ser eles a descobrir.
Pois, 2014 poderá ser o que dele fizermos, pois pode. Se for um pouco melhor, não me importarei. 
Paciência e coragem. Com maiúscula

Feliz Ano Novo.