quarta-feira, 26 de março de 2014

Cheesecake.

(fotografia de Patrícia Pintéus, Março de 2014, Cheese.com.)



Cheesecake.

A mancha é vermelha, framboesa, uma mancha de brilho, salpicada  com  gotas prateadas. Por baixo, uma fita larga de natas e gelatina, que a lâmina da faca não respeita, uma camada mais grossa de bolacha e açúcar compõe o círculo guloso e suporta todas as investidas. Durante três dias, talvez dois, uma caixa branca com dois corações cor de rosa, desenhados a caneta de feltro, guardará os restos irregulares - dispostos ao gosto e jeito dos dedos lambuzados - desse círculo doce e sôfrego.

Um pequeno prazer, desfeito à colher e o silêncio de dois pares de olhos risonhos. Nada de muito importante. Ou glorioso. Apenas a felicidade num prato sujo de cheesecake de framboesa. Às vezes, é quanto baste.

 










segunda-feira, 17 de março de 2014

Domingo à noite





Domingo à noite

As escadas não têm pó, os cantos foram muito bem limpos e no tampo da mesa não se escreve o teu nome, um palavrão, nada. Uma mesa de madeira, como devem ser as mesas de madeira limpas e arrumadas. A sala está imaculada, os livros estão fechados e têm dentro um marcador, um pano de linho cobre a banqueta forrada a brocado branco, o écran da televisão está escuro e brilhante, as jarras têm flores, o candeeiro de vidro mostra a parede branca, o céu escureceu, a lua cheia faz-lhe companhia e, até, se pode ouvir música. No ar, o cheiro nosso, de casa, laranja e âmbar, quente, invisível. No silêncio, percebo os dedos no teclado e uma torneira a pingar. Paira a voz da vizinha, a porta de um carro a fechar-se, a linha de rio ao fim da rua, se me levantasse para o ver. Há quadros novos na parede, uma taça  de vidro na mesinha da entrada onde se podem poisar as chaves, quando chegamos a casa. Respiro fundo, encolho os ombros e penso em ti. Se aqui estivesses, eu não teria reparado na limpeza do chão e as cadeiras estariam desalinhadas. Estaríamos a ouvir uma canção de que não gosto, teria aberto o Expresso, talvez pedisses pizza para o jantar e eu, por momentos, pensaria no desconcerto do mundo discutiríamos a opinião conservadora e homofóbica dos teus colegas betos, ouviríamos atentos os argumentos do teu irmão, entraríamos, calmos, na semana de aulas, trabalhos de casa, testes intermédios e despertadores. Como fazemos sempre ao domingo, antes do jantar. Mas tu não estás, o teu irmão também não e só consigo pensar que não te conheço, não sei o que te falta, não entendo o teu sofrimento - o meu foi tão diferente! Vejo a raiva que cresce, a mochila atirada para o chão, os livros sem capa, o desespero do teu olhar, a agressividade nos gestos, vejo a voz a crescer, o corpo descontrolado, os pés descalços, sempre descalços, a angústia na recusa e o coração que não controlas a troçar da tua fragilidade. Tu não estás aqui, a meu lado, mas nunca daqui saíste, nunca sais, a tua presença não me incomoda, vivo mal sem o teu sentido de humor e  não sei com te hei de dizer isto, não sei! Ter quinze anos é tremendo, mas olha, também é tremendo ser-se. Depois dos quinze vêm os dezasseis, os dezassete e por aí fora, pouca coisa muda e nada, ou quase nada, melhora com o passar do tempo, garanto-te. Aprendemos a viver com o que somos, o que temos, de vez em quando, batemos o pé, jogamos um copo ao chão, derramamos uma cerveja na cabeça de alguém e aprendemos a ser pontuais. Arranjamos um deus, deitamos cá para fora o amor com que nascemos, entretemo-nos a namorar e, um dia, acharemos graça à primavera, mas os quinze anos só ficarão longe no relógio e, sim, as borbulhas desaparecem. Prometo-te.
É tremendo ser-se, acredita.

 E tu serás capaz de me prometer que vais pensar em tudo o que eu te disse?

domingo, 16 de março de 2014

love poem to no one in particular.



Love Poem to No One in Particular

 

Let me touch you with my words
for my hands lie limp as empty gloves.
 Let my words stroke your hair
slide down your back
and tickle your belly
for my hands light and free flying as bricks.
 Ignore my wishes and stubbornly refuse to carry out my quietest desires.
 Let my words enter your mind
bearing torches.
 Admit them willingly into your being
so they may caress you gently
within.

 

Mark O'Brian

 


 

quinta-feira, 13 de março de 2014

Ouvido por aí.





Ouvido por aí

“Que bom é estar dentro da minha vida”, pois dentro da minha vida, também, não se está nada mal. O dia começou radioso e animado. Não houve choros, nem gritos de gaivota enraivecida, nem tão pouco vidros partidos, ou portas esventradas a pontapé. Não, nada disso, apenas, uma garganta inflamada, uma febre que ronda os trinta e oito (à sombra); a cabeça cheia de pregos; duas contas  para pagar; a conta do supermercado de cento e vinte e cinco euros  e quarenta e dois cêntimos à qual foram retirados os supérfluos, que é como quem diz tudo o que tem 23% de IVA (tudo, tudo não, porque uma fatia de queijo amanteigado nunca fez mal a ninguém); um adolescente (essa invenção da burguesia endinheirada que não sabia como entreter os filhos durante os períodos – longos –em que a escola fechava para ir a banhos - outra invenção recente, acompanhada de  sandes de pasta de atum), dizia eu, um adolescente que odeia a escola e durante trinta e cinco minutos tentou convencer-me que estava doente; um incómodo que insiste em fazer-se sentir a meu lado; os gritos do vizinho que deixou o cão fechado em casa ( é o vizinho que grita, pois claro, porque o cão não deveria ficar tantas horas fechado em casa, oxalá fique com uma dor de garganta-arranhada-inflamada, e que não me peça uma lamela de pastilhas Mebocína, eu não lha dou, pronto! ); uma senhora simpática insiste em dizer-me que temos de ter muita paciência porque fases más todos temos na vida, precisamos de passar por elas para nos fortalecermos e tornarmos as almas mais nobres aos olhos de Deus (a tia dela também, diria alguém); um  rapaz que me oferece duas canetas e um bloco de notas, se eu deixar de pagar o contador do gás e todos os dias me bate à porta; dois senhores da política que assinaram um papel e foram exonerados, porque Caxias está transformado em hotel de charme, como agora se diz, ou estarei enganada? Se calhar o hotel de charme é noutro sítio, mas para o caso também não interessa; a água a deixar um rasto de dor quando engulo; este sol lindo e quentinho a entrar-me pela vida dentro; as pessoas todas com aquela cara de felicidade como se vivessem no melhor filme de Indiana Jones e a esquecer que à noite ainda faz muito frio e nem todos somos filhos do mesmo pai e da mesma mãe; os trabalhadores a fazer greve e o senhor na televisão a dizer que é apenas mais um momento de luta D. José Policarpo morreu e os seus pares dizem que Deus escreve direito por linhas tortas, este senhor, por acaso, não estava dentro da minha vida, mas se quando eu morrer disserem o mesmo, por favor, calem-se. Tudo isto está nesta vida onde se está bem, cá dentro, porque eu não ia no Boeing 777, nem irei A Kuala Lumpur nos próximos dias, se algum dia lá irei, não sei – tudo à minha volta é um mistério e animação constantes. E Imprevistos, porque se eu soubesse o que o futuro me reserva talvez não me levantasse da cama todos os dias, esta profunda citação não é minha, eu também não digo de quem é – não quero qualquer um dentro da minha vida. Porque se está bem cá dentro. Por agora, e porque não estão bem (nem mal) dentro da minha vida, aproveitem o sol quentinho, bebam muitas coca-colas zero, com muito gelo, dispam as camisinhas de marca, estiquem as varizes, chupitem umas jolas à beira- Tejo e façam de conta que dentro das vossas vidas está o melhor que podem ter neste país amarelinho, morninho de selfies rosadinhos, muito gloss, auto-estradas e restaurantes saudáveis.

Que bem se está dentro da minha vida!


terça-feira, 11 de março de 2014

Os outros






Os outros.

Nunca pensava nas pessoas como se de obstáculos ou barreiras se tratassem. Eram pessoas como ela. Ela e os outros. É assim com toda a gente. Com todas as pessoas. Às vezes, percebia que a olhavam com desconfiança, pensava que deveria ter estampado no rosto o estúpido sorriso de quem está, apenas, vivo. Se calhar pensam que ganhei o euromilhões, que mudei de emprego, que enlouqueci e continuavam pelo mesmo caminho, ela e o seu sorriso estúpido. Em dias de mágoa e de cansaço evitava olhar. Os outros. As pessoas eram-lhe indiferentes. Não percebia se lhe sorriam ou troçavam dos seus sapatos. Eram pessoas. Eram outros. Ela era ela. Uma outra pessoa. Uma pessoa como as outras pessoas. Quando ficava em casa, num dia como o de hoje –soalheiro e luminoso – as pessoas não  a incomodavam, estavam na rua, longe, dentro das suas vidas. No entanto, não conseguia deixar de pensar que o dia de hoje tinha sido um bom dia, passei um bom dia, um dia tranquilo, preguiçoso, luminoso. Sozinha, sem ruído. Sem movimento. Sem os outros. Sem pessoas. Li que amanhã o dia também será de sol e calor. Veremos.
Quem  será o dia de amanhã?



segunda-feira, 10 de março de 2014

Sentada na cama a mulher olhava o mar.

Auguste Rodin, O Beijo





Sentada na cama a mulher olhava o mar.

Sentada na cama a mulher olhava o mar. Azul. Em ondas que morriam nos seus olhos. A mulher esperava. O homem que chegaria. Não tardarei. Deito-me a teu lado. Não tardarei. A mulher esperava. Na pele pressentia já a sua língua. A boca na boca. Chegaria, em minutos, o homem. Conhecia-o desde sempre, tratava-o por homem, não sabia o seu nome. Pressentia a pele dele na sua. A língua. Seria o cheiro o primeiro a chegar. Depois os dedos. Depois os dedos. Depois os dedos sem nada para rasgar. A pele. Os olhos na penumbra. A boca. Ah! Sim, a boca. O homem chegou. Encostou-se. Roçou-se, muito devagar, quando se deitou a seu lado. Lembrou-se do seu cheiro. Lembrou-se das mãos. Lembrou-se por inteiro. Chegou-se a ele. Pediu-lhe a pele. Exigiu a língua. Gemiam devagar. A respiração em surdina. Cresciam ao lado um do outro. Rolava o desejo. Enrolavam-se beijos. A língua. Ah! A língua, ela lembrava-se. Exigentes. Sôfregos. Mais lentos, depois mais rápidos. As mãos em nó. A respiração gotejava no  grito. Surdo, o grito. Quase a sair da garganta. Abria-se-lhes, o corpo, a carne. As pernas num só passo, contorciam-se a passos de língua, a gestos de sexo. Colados, sentiram chegar como um tremor desencontrado, o arrepio. Nas mãos abertas e na pele sentiram o corpo a abrir, num soluço, de perna, sexo e língua.

Ficaram parados o resto do dia.

 O resto da noite.

Quando se sentaram na cama olharam o mar pela última vez.