terça-feira, 29 de abril de 2014

Uma carta da Paula B.






Querida amiga.

Querida amiga, tenho pressa, deixo-te este bilhete na caixa do correio, o meu avião parte, esta noite, não sei onde te poderei encontrar.

Lavas muito bem os legumes que tens no frigorífico, escolhes os que ainda têm viço e fazes a melhor sopa que souberes, entretanto, lembraste que leste a Divina Comédia de Dante de Alighieri, porque houve um senhor que a traduziu, arrumas o teu dia ao lado dos calções do remo, apetece-te um cigarro, abres  a última garrafa de Pomares, um tinto do Douro,  os vinhos alentejanos nunca foram do teu agrado, pedes ajuda à tua amiga  do  primeiro esquerdo, ela dir-te-á que para fazer as salsichas com lombardo, precisas de um lombardo que não tenha as folhas muito rijas, arrumas tudo muito bem numa panela  de pressão que tiveste dificuldade em fechar, pensas que melhor não podias ter  feito e pões o disco que hoje te ofereceste, a tocar, Stefano Bollani e Hamilton de Hollanda. Agarraste as horas do dia que te dão mais paz e sentas-te a escrever. Para dizer o quê?  Achas que isso interessa a mais alguém a não ser a ti? Deixa-te levar pela música, recorda que um dia te disseram a felicidade tem um só caminho e tu acreditaste, não te incomodes, a tua casa é um templo, cheira muito bem, tens sempre flores amarelas e arrumas  a roupa por cores. Algures, haverá alguém a pensar que o céu tem uma só cor e que o Guincho poderia ser o caminho para partires para outras Áfricas. Lembra-te que ainda te falta pagar a conta da  luz, a Tv Cabo e as explicações de matemática. A conta da farmácia tinha mais zeros do que tu imaginavas, mas não te rales , não és diferente dos outros  e sentes a falta dos poetas que têm morrido, porque, se calhar, foi com eles que aprendeste a dizer: Leva- me a dançar,/ um dia destes,/ leva-me ao mar, /leva-me a ver as estrelas,/ desarruma-me a casa e depois esquece que eu existo/se te perguntarem por mim,/ não respondas. Que sabemos um do outro, afinal? Ali, na janela que escolheste para olhar o rio, há muitas manchas de humidade e, se não fores imediatamente desligar o forno, as empadas do miúdo ficarão queimadas e ele não te perdoará - estuda com afinco, há muitos meses. O exame de filosofia poderá ser a melhor recompensa. As miúdas olham para ele e é só o discurso dele sobre Kant, que conseguem compreender. (Pensam elas. Ele está noutra).Podes chorar à vontade nunca percebeste Kant e um puto de dezasseis, que ainda, por cima (de quem?), é teu filho, só pode ser melhor que o maravilhoso bolo de chocolates que ofereces às visitas, deixa estar, não pediste e não escolheste nada, além de te pores a jeito e quereres aos trinta e oito anos ter uma família. E tiveste. E tens, são muito difíceis porque lhes deste a ouvir Erik Satie e os adormeceste ao som de Al Di Meola, na esperança  remota (no fundo era assim  que pensavas), que estarias a ensinar um mundo melhor. Olhas para ti e vês que uma estúpida doença te marcou mais do que tu querias. Marcou-te, por dentro, por fora estás igual – talvez melhor –, ficaste apavorada, perdeste o céu e não querias acreditar, quando, pela primeira vez, não conseguiste abrir uma garrafa de Ermelinda, desfizeste a rolha e ficaste a pensar que a rolha de cortiça era uma metáfora da tua vida. Deixa-te de merdas, aproveita o vinho, decanta-o, pede ao miúdo que te explique Kant, porque em troca tu podes ensiná-lo a ler Fernando Pessoa, como ninguém, e sabes porquê? Primeiro, porque estudaste e achas e, com muita razão, que o Livro do Desassossego não é o único livro que se lê e vende, algures, numa livraria europeia e, segundo não conheço ninguém, e eu conheço, muita gente, que goste tanto de palavrar quanto tu. O mais novo, ainda é mais a Demanda do Santo Graal, e tu foste o quê? Deixa-o, aprender com os próprios passos e ouve-o, porque para quinze anos não gostar de futebol e considerar que o seu herói é um tetraplégico, só te poderá fazer pensar que quando, aos três anos trauteava a Rainha da Noite da Ópera Flauta Mágica, já tinha percebido alguma coisinha da vida. Tu com a idade dele andavas às voltas com o atirei o pau gato ao gato. Imagina a tua vida, tendo como horizonte a linha mais indefinida de Ayamonte, estarias, agora, a fazer o quê? A ouvir os discos do teus pais, a passar as noites, por aí, à espera que uma qualquer universidade particular, que tu não poderias pagar, daqui a una anos, te chamasse. Pois, não é como sempre dizes a sorte dá muito trabalho? Já viraste as empadas? Ligaste a máquina da roupa? Deixa o resto para amanhã, estás doente e precisas de descansar e, pela tua saúde, vive a tua vida e bebe o teu copo de Ermelinda, com, ou sem, rolha. Já acabas-te o Pomares? Não te esqueças de triturar a sopa, os putos gostam e os pratos dão menos trabalho a lavar.

 Adoro-te. Passar sem a tua amizade é uma noite de trovões.

Um beijo.

A tua amiga de sempre Paula B.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Finíssimo.




 Finíssimo.

No meu bairro, tranquilo e virado para o Tejo, há já algum tempo um Supermercado de luxo. A pastelaria onde, às vezes, me oferecia o prazer de um pequeno-almoço e o lugar da fruta do Sr. Zé e da Dª Fátima fecharão em breve. O meu bairro perderá o ar de bairro simpático, bem frequentado. Passará a ser um bairro burguês, de gente vaidosa e arrogante. Nem todos, claro, tenho vizinhos simpáticos, gente de bem, vizinhos e vizinhas que apanham com um saquinho de plástico e deitam no contentor do lixo os presentes dos seus canitos (como se diz na minha terra). Nada tenho contra cães que usam a rua como WC, se os seus donos forem civilizados. Tenho vizinhos que conheço há dezoito anos e me cumprimentam, tenho outros que foram meus alunos e moram, ou na casa dos pais, ou na casa que era dos pais. Na casa em frente mora um médico que me ajudou num febrão de um dos meus filhos, ao fim da rua, mora um dos políticos mais simpáticos que conheço. Tenho a certeza de que, apesar de não passear o canito na rua, muita gente me conhece. Os meus filhos têm como amigos, desde sempre, alguns vizinhos. Jogaram à bola e andaram de bicicleta nas ruas do bairro, experiência pouco comum na cidade de Lisboa. Moro num bairro simpático, arejado e luminoso. Um bairro que até se pode orgulhar de ter uma igreja de arquitetura arrojada e colorida, quanto à igreja e à sua cruz deitada não me alongarei.Voltemos às pessoas bem educadas e ao Supermercado de luxo. Como hoje é domingo há poucos autocarros e, cheia de boas intenções, vontade de dar a volta à crise e organizar a semana, isto é, rechear o frigorífico, fui ao Supermercado de luxo. Senhoras muito bem postas, crianças a berrar que queriam ovos Kinder, senhores indignados porque já não há educação, rapazes borbulhentos a ajudar as mães, uma rapariga a empurrar a cadeira de rodas da avó e uma colaboradora - como agora se diz - fardada a rigor e com uma toquinha de rendas na cabeça (mas hoje não é domingo? pensei, os colaboradores já não folgam ao domingo? devo ter feito uma cara tão espantada que a rapariga, bonita e sorridente, encolheu os ombros, virou as costas e seguiu para o corredor da fruta), falta, nesta descrição, a referência a vários senhores elegantes nas suas calças domingueiras, de bombazina já coçada, que, de cachimbo apagado, vão comprar a garrafa de vinho, o jantar congelado, o saco de gelo, o uísque de malte. Finíssimo. Tudo muito a valer bons cartões de crédito e muito chique. Pois é. O supermercado fino do meu bairro é muito bem frequentado, tão bem frequentado que hoje fui, ali, às claras, incomodada, assediada. No corredor da fruta, ouvi a melhor fruta é a menina, olhei para esquerda e para direita, estaria a falar comigo? Sim, maçãzinha de Alcobaça é consigo que estou a falar, como mulher honrada não tem ouvidos, continuei o meu caminho, muito perturbada, confesso, e desejosa que na charcutaria não houvesse ninguém. Tinha duas pessoas à minha frente, arrisquei o fiambre. Com esse casaco tão largo não sei se o seu presunto é bom, a mesma voz, o mesmo cavalheiro, afastei-me, aguardei a minha vez e olhava desesperada para o empregado que aviava uma mãe de família que deveria ter vinte filhos e gostar de todas as variedades de fiambre e queijo, então boneca não vai um paiozinho do lombo? Nesse momento, o empregado percebeu a minha aflição e chamou um colega para me ajudar. Eu tremia de raiva e indignação, estava disposta a chamar o segurança, joguei ao elegante senhor, um olhar ameaçador e de repugnância, apanhei o fiambre e corri para a caixa. Acrescente-se que, além do funcionário da charcutaria, ninguém percebeu o meu embaraço. Procurei a caixa com menos gente, olhei para a porta da rua, certifiquei-me da presença dos seguranças, respirei fundo e esperei a minha vez, percebi que o imbecil, idiota, canalha, ordinário e todos os outros nomes que me passaram pela cabeça tinha desaparecido, não o vi até onde o meu olhar discreto chegava, deve estar no raio que o parta, estúpido. Tudo isto me passava pela cabeça, chegou a minha vez, uma coisa, outra e mais outra, no tapete rolante, a conta, os sacos, o cartão, tudo fiz a uma velocidade que fez de mim, aos olhos da menina da caixa, uma pessoa muito mal educada e stressada. Agarrei os sacos e saí do Supermercado chique, fino e tão bem frequentado. Finíssimo. Como um dos sacos tinha ovos, parei uns instantes para os compor e equilibrar o peso. Então boneca, queres ajuda? Levas aí muito peso? Deixa-me ajudar-te, sou um cavalheiro. Ai, e agora? Pouso os sacos, mando-o à merda? Chamo o segurança, que chatice! (não pensei chatice, pensei num palavrão), um idiota alto, bem vestido, grisalho, pareceu-me que já tinha bebido mais do que a conta. Ai, o gajo está com os copos, vou acelerar. Corro e vou para casa, não me apanha. Nestes segundos de hesitação, pernas a tremer e ódio ao sexo masculino em geral, oiço Olá stôra, não sabia que conhecia o pai? Pai conhece a minha stôra? Foi minha stôra de Português. Então stôra está melhor? Que bom vê-la! O energúmeno perdeu a cor da cara, a voz, a pose e deveria ter perdido muito mais, estendeu-me a mão, deixei-o de mão estendida e, como de ranhosa e pindérica não tenho nada, desculpei-me com as mãos cheias de sacos, a pressa, os miúdos à espera, adeus, minha querida, gostei de a ver. Virei as costas e vim para casa. Por dentro, fiquei sem saber se deveria chorar, ou rir à gargalhada. Não chorei, nem ri. Arrumei os congelados e sentei-me a escrever.Tenho o coração apertado, penso na filha, boa aluna, boa cabeça, um ser humano. Um maiúsculo Ser Humano. Ainda é nela que penso. Nem me apetece chamar nomes ao pai, porque, se for alguma coisa parecida com um homem, viverá com muita dificuldade tão grande humilhação.


domingo, 27 de abril de 2014

Glória



Glória

O filme Glória não nos diz nada que nós, mulheres, não soubéssemos, a saber: as mulheres vão sozinhas para todo o lado, dançam onde quiserem e dormem com o senhor bem apessoado que se lhes atravessar no caminho, se assim o entenderem. Sim tudo isto, nós, mulheres, sabemos muito, além disso, educamos sozinhas os filhos, tratamos dos netos, amparamos os desgostos, afeiçoamo-nos, damos um abraço ao gato  do vizinho esquizofrénico se ele no-lo pedir.Trabalhamos e somos boas no que fazemos. Separamos, com inteligência, o presente do passado e organizamo-lo com método. Deixamos que o futuro parta para a Suécia e damos o anti biótico de oito em oito horas. É a sabedoria que aprendemos com as avós analfabetas, mas que sabiam do mundo mais do que se aprendia na escola. Será dos genes? Será. O filme Glória não traz nada de novo e, se dúvidas tivéssemos, os homens não saem à rua sem o casaco coçado que a mulher passou a ferro, nem a culpa que - “chefe de família”-  sente quando se oferece a si próprio o direito de ser feliz. E, se esse “chefe de família”, se liberta e salta de uma cama quente para outra mais quente, aos trinta anos, no momento em que os filhos o abraçarem, vinte anos depois, chora, lágrimas de um tinto de casta selecionada, o sucesso e a entrada na idade adulta dos filhos, que não viu acontecer. Há vencedores numa relação amorosa que termina com uma separação? Não, não há, mas a harmonia é bordada a ponto cruz, perfeito, pelas mulheres que a um só tempo são mãe e pai. E o filme Glória é isto. E, não os homens não são “grande coisa”, neste filme! Não são heróis, não são responsáveis, não são bons pais, não são bons companheiros, não são uns filhos da puta e, se chamarmos ao par de Glória, cabrãozinho, estamos a ser generosos. Não é ficção, é a vida, é a educação, a sociedade que protege os “seus homens” e é, quero - com alguma – ingenuidade – pensar esta herança judaico-cristã que ensinou as mulheres a cozinhar a sopa de legumes e o homem a ganhar o pão que sustenta a família, com o suor do seu rosto. Glória é um filme que vive do desempenho da personagem principal, da sua maturidade e da sua liberdade, a pulso, conquistada. Não é um ror de clichés, porque, pela primeira vejo num filme, uma  heroína que é tão bonita quanto eu, ou quanto tu e que aos 50/60 anos tem maturidade, vida, sensualidade e, imagine-se, vida sexual. É uma mulher que tem prazer físico, passo a redundância, numa relação amorosa. Sim, o cinema está cheio de belos exemplos, mulheres deslumbrantes, curvas perfeitas, maminhas muito firmes, caras desenhadas com a habilidade de um fotógrafo muito competente, mas muito jovens de silhueta e experiência. Estão a imaginar uma cinquentona, madura, de óculos, avó, ao balcão de uma discoteca a beber copos e fumar umas  ganzas com as amigas ou sozinha ? Estão? Já tinham visto uma protagonista com estas características? Eu não! É decadente? Não? Tem pouca dignidade? Não! É inverosímil? Não! É pouco séria? (pois o cliché, judaico – cristão) Não. É igual a tantas outras mulheres, como eu, iguais a mim e que usam óculos, como tu. Mulheres normais - signifique o que significar – o adjetivo normal e o desempenho da atriz , Paulina Garcia, valeu-lhe o Urso de Prata no Festival de  Berlim em 2013. O realizador, Sebastian Lelio, sabia o que estava a fazer. Eu gostei  desta Glória, segundo o argumento tem mais três anos do que eu. Estou, portanto, tranquila. Nem desesperada, nem “entradota”. Valham-nos estes chilenos que, de vez em quando, se lembram de nós. Que não somos louras, nem temos um metro e oitenta de pernas!

Registo o poema que o senhor, muito apaixonado, lê a Glória num assomo de paixão mais arrebatada. Quem não sucumbiria a um poema destes? Coloco a questão de outra forma: Quem não sentiria as pernas derreterem, ao ouvir um poema destes? Nós, mulheres, somos muito românticas e melodramáticas? Não, se calhar, andamos é a ler pouca poesia, uns aos outros. Homens e mulheres.
Deixo-vos o poema, leiam-no, se quiserem, se não quiserem, a mim não me fará diferença nenhuma.
Eu vou ali dançar e não sei a que horas  volto.

 [...]
Me gustaría ser un nido si fueras un pájaro
me gustaría ser una bufanda si fueras un cuello y tuvieras frío
si fueras música yo sería un oído
si fueras agua yo sería un vaso
si fueras luz yo sería un ojo
si fueras pie yo sería un calcetín
si fueras el mar yo sería una playa
y si fueras todavía el mar yo sería un pez
y nadaría por ti
y si fueras el mar yo sería sal
y si yo fuera sal
tú serías una lechuga
una palta o al menos un huevo frito
y si tú fueras un huevo frito
yo sería un pedazo de pan
y si yo fuera un pedazo de pan
tú serías mantequilla o mermelada
y si tú fueras mermelada
yo sería el durazno de la mermelada
y si yo fuera un durazno
tú serías un árbol
y si tú fueras un árbol
yo sería tu savia y correría
por los brazos como sangre
y si yo fuera sangre
viviría en tu corazón.



CLAUDIO BERTONI.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O Senhor do fato cinzento.





O senhor do fato cinzento.

Conhecerem-se num comício, um sábado à tarde. Saíram juntos, por acaso, cumprimentaram-se como camaradas, ela dissera-lhe que tinha gostado de o ouvir, ele convidou-o para um chazinho de limão e uma bolinha de Berlim, ela aceitou e ficou a ouvi-lo. Molhavam uns bocadinhos da bolinha no chá, enquanto ele falava. Ele gostava de falar, gesticulava, gostava de se ouvir dizer a bem da democracia, o povo deve ter qualidade de vida, todos deveriam ter casa própria, os velhotes têm se ser apoiados, o país precisa de se modernizar, inovar, fazer coisas novas, não devemos ter dívidas, ela ouvia-o, com muita atenção, admirava-lhe os gestos a acompanhar o fervor da vontade e das boas intenções, a voz alterada, as calças do fato cinzento muito vincadas. O cabelo muito penteado, nem uma pinguinha de caspa nos ombros, a pele sem um sinal da idade, o sorriso contido, mais vaidoso, nas histórias que contava, histórias da política, quando era mais novo. Conhecia todas as figuras importantes do partido. Apreciou o gosto dele pelas cantorias. Era humano, verdadeiro. Gostou logo dele, tinha futuro, um bom emprego, conhecia a vida, era ambicioso. Tudo lhe parecia perfeito. AI!  Parece que não existe, que saiu de um filme com a Júlia Roberts e tem tantos amigos, tão sincero. A mãezinha haveria de gostar dele, está sempre a dizer que eu estou encalhada e gorducha, que ninguém repara em mim. Combinaram outros chazinhos, sardinhas assadas nos Santos Populares, arriscaram uns camarõezinhos na Trafaria, umas matinés mais românticas no Colombo. Apareciam juntos nos comícios. Namoravam a sério. Ela esmerava-se nos fatinhos XXL da C&A, ele imperturbável e fiel ao fato cinzento sem um pinguinho de caspa nos ombros. Nem consigo acreditar, eu  ainda a morar com os meus pais, num prédio de três andares, sem elevador. Eu sem carro, sem graça! E  o que  mãezinha gosta dele! O paizinho nem se fala. Um senhor, a subir na empresa, quase diretor geral. Como o paizinho costuma dizer: é bom ter muitos amigos. O paizinho só não apreciava as conversas de política. Mas aninou-se quando ele subiu a Diretor Geral da empresa e arranjou um emprego como motorista ao primo Joaquim. Namoraram muitos jantares com uma caixinha de chocolates  - ele nunca se esquecia, eram marca branca, mas ele explicava à mãezinha que eram iguais aos belgas. Ele conhecia a Bélgica. Fui lá com o partido, uma viagem política. O coração dela a encher-se de orgulho, a mãezinha a dizer à vizinha do 3º direito é o rapaz com quem qualquer mãe sonha casar uma filha. Os vizinhos a cumprimentarem com uma vénia o senhor diretor geral. Que elegante é o namorado da filha dos vizinhos, tem um ar de pessoa séria, ajuizado, nem parece de agora. Tiveram sorte, coitadinhos. A filha, até, está mais bonita. Com muito preceito, noivaram, compraram uma casinha na linha de Sintra, são mais baratas e podemos comprar-te um carrinho. Casaram na igreja do bairro onde os pais dela viviam. Um vestido de noiva com um véu comprido, o fato cinzento um bocadinho mais escuro. Almoço numa quinta da Malveira muitos senhores importantes, senhoras de chapéu. É gente da política e das empresas dele, esclarecia a mãe da noiva. Viveremos felizes para sempre, como nos romances, pensava ela. Núpcias em Torremolinos, tenho este sonho desde miúda, não é uma viagem muito cara. Dinheiro não é problema, faço questão, dizia o senhor diretor geral de fato cinzento mais escuro.

 Continuam muito felizes, sempre juntos, ele continuou a subir na empresa. É administrador de muitas outras. Os fatos cinzentos são feitos por medida, usa uns óculos dourados de marca, continua a gostar de se ouvir falar. Ela continua a gostar de o ouvir, fazem férias no Algarve. A felicidade com que sempre sonhei. Pena que ele e o paizinho se tenham desentendido. Tinha pena. Via  a mãezinha às escondidas. Falava-lhe dele e das mentiras que se contavam. Só injustiças. O povo não sabe o que diz! Coisas da oposição, a mãezinha sabe o que é a oposição? Estamos pouco tempo juntos, coitadinho. Farta-se de trabalhar. De viajar. Não percebo o desgosto do paizinho, se as empresas não dão lucro, ele tem de despedir pessoal, até despediu o primo Joaquim. Coitado! Voltou para a terra. Levou para casa uns dinheirinhos. Se não fosse ele!!! Mas arranjou emprego para muitos amigos. E que jeitoso que ele fica no seu fato cinzento, quando aparece na televisão! O paizinho não percebe de administração de empresas, é o que é! É preciso inovar.

Ela está um bocadinho mais magra. Ele continua com a mesma cara de rapaz com quem qualquer mãe gostaria de casar uma filha. Vão juntos para todo o lado e, sempre que podem, ficam sentados, lado a lado, nos comícios do partido.

Que bem que lhe assenta o fato cinzento, nem um pinguinho de caspa nos ombros, nem nada.

domingo, 20 de abril de 2014

Arroz de lingueirão e Jean-Luc.






Arroz de lingueirão e Jean-Luc.

Fazemos sempre o mesmo.
Juntamo-nos, escolhemos o restaurante, compomos a roupinha, melhoramos a cor da pele, pomos um brilhozinho nos lábios e um sorriso mais sério.  Gostamos destes encontros, rimos, falamos de sexo, dos homens, dos “ex” e dos que ainda moram nas nossas casas, às vezes, nos nossos corações. Os filhos que temos, o que fazemos com a solidão que nos pertence, a política, o último filme que vimos, o que andamos a ler, o resultado das últimas análises, a Vida e a vidinha... Afastamos a tristeza – com o Guadiana, por perto, as gargalhadas saltam. Felizes. Não, não somos as raparigas do Sei Lá, porque nenhuma de nós consegue manter os lábios pintados durante tanto tempo. Tudo pode ser assunto para nos ouvirmos, darmos a nossa opinião, alongar a nossa vaidade, bebermos uma garrafa de tinto, meia dúzia de imperiais. O que for. Já não vamos à infância, um ou outro episódio da adolescência. Lembram-se daquela vez? Gostamos de estar juntas, de rirmos das figuras que fazemos, de bocas  foleiras, dizer palavrões, de nos sentirmos, ainda, tão perto, tão umas das outras. Arroz de lingueirão, barriga de atum, lulas grelhadas e deixamos as palavras rolarem. Não nos importamos quando uma gargalhada mais alta nos mostra um olhar de soslaio de um casal muito arrumadinho. Estamos na nossa terra, estamos juntas. E, mesmo que uma dor nos cale, por momentos, bastará uma nódoa numa camisa de seda, ou um sinal de um sms para  a  conversa continuar. A C tem um namorado novo, a F vai viajar no próximo verão, a T perdeu peso, a S lamenta que o vinte cinco de abril tenha sido há quarenta anos e que já ninguém se lembre, a M está escrever um livro, Glória é o filme que todas queremos ver, a P baralhou as datas e comprou bilhetes para o concerto errado. Rimos. Põe os óculos, gritamos em coro, alguém quer sobremesa? não, não, nenhuma de nós aprecia os ginásios. As vidinhas de cada uma de nós, ali no papel branco que são, agora, as toalhas de mesa. Estávamos bem, por isso, antes do café e da conta tive de lhes contar.  Ah! Jean-Luc, tive de lhes falar de ti. Tive de lhes contar, Jean-Luc. Queria dar-lhes este segredo, queria que ríssemos todas, que nos brilhassem os olhos, pedir-lhes um abraço, queria descrever a cor do teu cabelo, as mãos grandes, pronunciar com as letras todas J e a n – L u c. Deixaram-me falar, contei-lhes as conversas intermináveis, os dedos a escreverem corações, a facilidade em trocar elogios. Em francês. Ainda falo muito bem francês! Sim, eu sei que vocês sabem. Versos inteirinhos das canções do Brel. E logo do Brel? Do Brel, o teu Brel? Jean-Luc, Jean-luc, repetia a C, como no filme, e é parecido com o ator do filme O Artista? E agora? Como vais fazer? Vais viver para Paris? Agora, não sei. Talvez nos encontremos, outra vez. Ou não. Não sei. Vou deixar o tempo passar. Vais deixar o tempo passar? Não sei, não sei. Repetia. Não há muito a fazer, pois não? Se calhar, regressa um dia destes para te ver, ou combinam encontrar-se a meio caminho. J’aime Paris au mois de mai. Parem de cantar, se faz favor. Não poderias ter encontrado um Jean-Luc que fosse filho de emigrantes? Que vivesse em Portugal? Uma nuvem pairou, uma sombra muito breve no papel branco. Manchado de amarelo e encarnado. Arroz de lingueirão e vinho tinto. Pagámos, vestimos os casacos e saímos.

Vamos beber outro café no sítio do costume?



sexta-feira, 18 de abril de 2014

O Guadiana é o rio que corre na minha aldeia.




O Guadiana é o rio que corre na minha aldeia.

Entrámos no autocarro noventa e três, pessoas, mochilas, hospedeira, WC e serviço de bar permanente. Vínhamos da cidade, queríamos o sol e o rio. O miúdo sentou-se a meu lado, não pediu o lugar  da janela enroscou-se na cadeira, poisou a cabeça no meu ombro e adormeceu. Dormiu sempre, o cansaço ainda lhe tirava a força e as gargalhadas. Recostei-me, olhei para cidade que se esvaía nas cores do entardecer, o rio muito escuro adormecera ao sol a estrada começava a abrir-se, no écran minúsculo contava-se, a várias vozes, o nine eleven, a hospedeira perguntava se queríamos comer, beber. Não, não quero nada, muito obrigada. Quero chegar depressa, pensei. Mas o caminho ainda eram cinco horas e o livro de Jeffrey Eugenides estava intacto a muitas páginas do fim. Teria tempo, nenhuma cabeça me chamou a atenção e com as dezenas de dedos a correr nos tablets não se ouvia nenhuma conversa que valesse um ouvido à escuta. Olhei para o céu azul escuro, pintado a vermelho e laranja, a lua muito cheia, ainda, transparente num céu a mudar, a voar sobre as nossas cabeças. Fiquei a olhar a estrada de riscas brancas. Não tirava os olhos da lua, ouvia o suspirar sereno do miúdo o tiroteio do écran, embalada deixei que a memória se instalasse. Outras luas cheias, abraços apertados, amigos à volta de uma mesa, conversas intermináveis à beira rio, canções em castelhano, saias levantadas a rodar numas sevilhanas improvisadas, as mão apertadas de unhas roídas a prometer amor eterno, as primeiras festas até de manhã, os amigos que já partiram, as caras de todos a ganharem rugas, as histórias de encontros e desencontros que fazem de nós o que somos, o que queríamos ser quando fôssemos grandes, os filhos, os pais, o colo dos avós, a casa que já não existe, o jardim de jogar às escondidas, as diferenças que se diluem nas ‘pazes’ que já fizemos, o que tínhamos para dizer, a esplanada que escolheríamos, as viagens por fazer e no rolar dos quilómetros a lua foi crescendo. Ficou branca no céu muito escuro, o Guadiana não tardaria a chegar. O miúdo acordou, pediu água, arrumei o livro no saco, encostei a cabeça à cadeira e esperei. Estamos quase a chegar a casa. A minha casa?! Não, à casa dos meus pais. A casa é dos avós. A rua?! É a rua principal da minha terra (alguém disse que todos temos uma terra – um lugar a que pertencemos), a minha terra é esta e o Guadiana o rio onde cresci. Gosto do Tejo, olho-o todos os dias, andámos de costas voltadas, durante uns tempos e reconciliámo-nos. Do Guadiana nunca consegui separar-me, não me lembro de uma zanga, ou de uma discussão.
A lua estava cheia quando chegámos e o rio lá estava a namorá-la.
Voltarei para o Tejo, para a minha casa, mas o Guadiana ficará a correr na minha  aldeia.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

"Mãe, tenho fome."



(interpretação de Valentina Lisitza)


Mãe, tenho fome.

Chegou feliz, o miúdo, em paz, as faces coradas do sol, da água, e do remo que arrasta a água e a vontade de chegar mais à frente. Não lavou os dentes, durante cinco dias, comeu massa instantânea, bolachas de chocolate, queijo e salsichas, dormiu no chão, acampar é muito desconfortável e tive frio, vesti duas camisolas, o saco cama era grosso, mas senti as pedrinhas todas nas costas, nas pernas, foi fixe, o melhor foi passar o dia inteiro a remar, remar, conhecia toda a gente e amanhã temos de arrumar e limpar os barcos, comprometi-me com o instrutor, mãe, estou cansado, vou tomar um banho de banheira cheia, tenho fome, mãe, estou muito cansado, quero dormir. Sem mais abraçou-me uma vez, depois deu-me mais um abraço e pediu-me que não lhe passasse o telefone se alguém lhe ligasse. Uma hora depois, já dormia um sono só, sereno, a sorrir, os braços esticados, lassos, ao longo do corpo leve. O peso todo da cabeça aos pés, a entrar em silêncio num mundo que só ele sabe. Deixou que o olhasse enquanto dormia, durante muito tempo. Respirava num ritmo doce e feliz e lembrei-me das histórias que o embalavam e das que o faziam rir à gargalhada e, como se o tempo tivesse parado, fomos, durante segundos, breves segundos, a mãe o filho mais felizes do universo.  Amanhã será outro dia.  

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Quinta-feira, 10 de abril de 2014





 Quinta-feira, dez de abril de 2014, uma e meia da tarde.

Já lá estava. Chegou muito devagarinho, em silêncio e leve. Chama-se tristeza e tem todas as cores do arco-íris. A luz e a presença ficaram na memória. Não esqueço a imagem. Não esquecerei a imagem. Instalou-se e, no entanto, sabia que não seria diferente. Vou em frente, talvez um milagre, uma atitude mais compreensiva, pensei. Se me habituasse a pensar sem esperança, sem expectativa. Pensar que à frente está um buraco negro. E os milagres não existem. Continuo a andar, acelero o passo, impõe-se a presença de um milagre. Ele ficaria tão feliz! Tenho o coração desalmado. Subo as escadas de mármore, não vejo ninguém, mas estão lá todos. O átrio é grande, luminoso e barulhento. Vejo uma amiga. Olho para a vitrine grande, transparente, cheia de dedadas e reflexos de outros rostos. Oiço a minha ansiedade, disfarço a tristeza. As cores do arco-íris, certo? Levanto um pouco a cabeça, começo a andar para a esquerda, para o princípio, procuro. Procuro o nome completo. À frente, colado ao vidro. O papel em branco, uma tira de papel branco, riscas azuis e umas letras e algarismos a preto. Bem alinhados. Muito certo, organizado, um Excel perfeito. Boa impressão. Encontro o nome completo, leio tudo uma vez, depois uma segunda vez. Não tenho dúvidas. Não valeu a esperança. Não sou uma pessoa de fé, não rezei. E uma dor muito fininha, muito fria, de ferro e gelo no meu coração. A doer-me. Dói um rio. Saltam as lágrimas, nem ligo ao borrão que ficará, mas meto-as para dentro. Respiro fundo, não sou capaz de fazer mais nada. A amiga vem, gentil, falar comigo. Por favor, não me digas nada, deixa-me, por favor, tu não compreendes e ainda bem, por favor. Desculpa! Afasto-me. Corro para nada, para fugir. Não me afasto muito. Não posso fugir. Quero. Não posso. As lágrimas continuam fechadas. Olho em volta. Procuro o corredor principal. As salas todas iguais. Onde raio será a sala 18? E a dor continua, muito fina, a cortar-me o ar. Não consigo respirar. Uma agulha muito fina.E mais nada.

- Está decidido, passarei a tarde no cinema!)

 





quarta-feira, 2 de abril de 2014

Um poema de Clarice Lispector





A Perfeição

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector



terça-feira, 1 de abril de 2014

Vem, antes que comece a chover.




Fugir da chuva e mais nada.

 -Vamos embora, vamos sair daqui, deixou de chover, arrefeceu um bocadinho e não tarda será noite, temos de partir. Vamos embora. Já. Traz tudo o que precisas para dois, três dias, depois logo se vê. Não te esqueças dos livros, dos comprimidos, o pó de arroz.  Pormenores. Não te distraias com pormenores. Traz o mais importante – tu, assim como estás. Vem já. Temos de agarrar a estrada. Não olhes para trás, não olhes. O que te pertence virá contigo, com a tua pele e eu estou aqui. Vim buscar-te. Vamos embora, antes de mais chuva. Consegues  ver o céu? Está tão escuro. Vem comigo. Vem. Vamos embora !   

 

( - Quem era?- perguntou-lhe  o homem, punha a mesa com os gestos de sempre.

   - Um inquérito qualquer, não percebi. Desliguei. Comes sopa?

    - Uma concha, não enchas muito o prato. Podias ter respondido. São miúdos, estão só a fazer o que lhes é pedido. Mal pagos, estes miúdos.

    - Pois. Podia ter respondido. Na próxima vez serei mais simpática. Está bem assim? )