sexta-feira, 16 de maio de 2014

A sensação da frescura do ar livre no interior do seu automóvel

Fotografia de Fernando Cabrita, Ria Formosa





A sensação da frescura do ar livre no interior do seu automóvel.

O cheiro era  uma mistura de loja gigante de artigos made in china e o tal odor que assegura o ambiente limpo e fresco durante mais, muito mais de quarenta dias. Uma fragância indefinida e violenta – um bouquet de lilases, salpicado com notas de laranja, âmbar, dois tempos de jasmim, um toque de baunilha e mel. Má literatura. Plástico e borracha. Pensei. Ambientador de casa de banho no exato momento em que se abre o frasco, ou descola o adesivo. Acre, doce, agressivo. A fazer doer a cabeça e a tornar um jantar agradável, na Hamburgaria da moda, num pesadelo igual ao daquele senhor que na televisão nos mostra restaurantes com ratazanas congeladas, peixe cozido ao vapor de um prazo de validade ultrapassado. O hamburguer, por momentos, foi um nó muito apertado. Enjoada. Só conseguia pensar e cheirar em âmbar, baunilha, baratas e ratos a apodrecer numa arca congeladora. Expliquei que um cheiro muito forte pode ser muito perturbador, alterar o humor,excitar, impedir a introspeção, transformar um momento romântico num pesadelo e...e… e… OH! Mãe que exagero, a mim o táxi só me cheira a táxi limpo e fresco a iniciar o turno da noite. Et, voilà, a lucidez de um miúdo de quinze anos a desfazer um elaborado e filosófico discurso sobre as diferentes maneiras de cheirar o mesmo âmbar. Não me rendi. Mas não achaste que o táxi tinha um cheiro muito intenso, muito forte? Não ficaste incomodado? Não era o cheiro normal daquelas árvores verdes que se penduram no espelho retrovisor e cheiram pretensiosamente a floresta, não, não, era um cheiro insuportável! Não te cheirou? Não, nada o incomodara, nada. Sou uma exagerada. E fazes muitos filmes na tua cabeça e, pelos vistos, também, na minha pituitária. A viagem foi curta, anoitecia devagar, uma lua lá em cima, o teste de matemática era um assunto esquecido, havia uma hora de facebook que saíra no bolo rei se estivéssemos no natal, duas horas de Lusíadas agendadas para o sábado e domingo e nas próximas horas seríamos só os dois, Mãe, acho que és uma boa mãe, muito boa mãe e fazes muito bem o teu trabalho, não tenhas dúvidas sobre isso Às vezes, não me apetece falar sobre mim, não tenho nada para te dizer. É só isso, mãe. Não te preocupes. Podias ter ido ver o rio, beber um copo de vinho com os teus amigos. Eu não me importo de ficar sozinho. Tu tens de ter uma vida só tua. Oh! Mãe! Sabes, ando a conversar com uma rapariga, conversamos muito. Mãe, é só isso! Continuo sem perceber por que é que ficaste tão agoniada, quando entraste no táxi, o cheiro era assim tão mau? Também não sei filho, mas já passou! E, olha, meu menino, estás no facebook há quarenta e cinco minutos…Amanhã, é dia de treino.

 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Em tempo de aniversário





 Uma aula de física numa cidade que eu não conheço.

Deixei o miúdo entre os ácidos e as bases, deixei-o bem. Queria uma sombra, um passeio, um caminho que conhecesse, um lugar fresco. Esperaria que as fórmulas se organizassem e, em paz, voltaríamos para casa. Estava num emaranhado de estradas, prédios que eu não conhecia, não sabia aquele céu, aquelas nuvens, lá perguntei é por ali, não tem nada que enganar, vira à esquerda, no cruzamento, na segunda à direita, e, ao lado dos prédios amarelos, encontra o grande centro comercial. Teria preferido uma igreja, um lugar mais fresco, um banco para me sentar e esperar. Nada mais feio e estéril que o corredor da fruta e das latas de conserva com o talho e a peixaria ao fundo. Lembrei-me de um abraço, um colo, um ombro. Nada, ali estava eu entre o fiambre e as bananas importadas. Tudo igual e da mesma cor. Olhava para as prateleiras e para a cara das pessoas. Cumpri a tarefa de esperar naquele país que eu não conhecia. Peguei no telemóvel, que, entretanto, piscou o sinal de mensagem mãe onde estás? Não sei. Seria a resposta mais certa. Saiu um a mãe não demora. Não conheço estas pessoas, não sabia onde estava a prateleira dos detergentes e já não me recordava do nome da rua das fórmulas de química, do semáforo, ponto de referência, será que ainda conseguirei reconhecer o cruzamento? Lembrei-me das palavras de alguém, podemos passar muitas vezes pelo mesmo sítio e não o conhecer. Eu não reconhecia nada, porque nunca ali estivera. Hoje, ninguém se perde e as ruas são todas iguais A cidade cresceu em todas as direções. Só me faltava uma igreja, tinha muito calor e as igrejas são vitrais, bancos frescos com pessoas de olhar mais sereno. E o teu abraço do outro lado da Europa chegou a seguir. Chego quinta-feira, o meu abraço não é elástico mas deixo-te o maior beijo que quiseres. Sosseguei. Agora, só faltava a fruta, o pagamento no multibanco, apanhar o miúdo e continuar com a vidinha, sem sobressaltos. O de sempre. E o de sempre era uma esperança e um dever cumprido, ainda pensei em ligar-te outra vez, mandar uma mensagem, pelo feicebuque e pedir-te o meu perfume, tinha uma linha de conforto, no fundo do frasco. Tive vergonha. Regresso. Contas pagas, o jantar quase pronto e o semáforo, ponto de referência, naquela cidade onde eu nunca estivera. Apanhei o miúdo, voltámos para o nosso país, talvez a expressão mais feliz da língua francesa. Mon pays. A cidade onde se nasceu e a rua onde se vive,   que podem não coincidir, mas são, sempre, mon pays. Chegámos. A rotina a pôr a mesa e a aquecer a sopa E, sem aviso. A violência da discussão, a cadeira a voar, os palavrões, o olho negro, as lágrimas e os soluços. A briga entre os irmãos. Não percebo como começou. Foi difícil, poderia ter pedido a ajuda ao vizinho. Acalmaram, por fim, pedi-te outro abraço chego quinta, não te inquietes. Lembrei-me do perfume que era uma linha de conforto no fundo do frasco. Tive vergonha. Mas por que raio nunca pedes ajuda, quando precisas? Aprende a pedir ajuda, já pensaste que os amigos também poderão ter prazer em ajudar? Têm razão, eu só pensava, nas fórmulas da física, na violência, na violência, nos gritos, nos insultos. E no sono que tardava.

 

(Faz hoje, ou fez ontem, um ano que comecei a escrever este blog, fi-lo por insistência e com ajuda de um amigo e de uma amiga, tenho publicado com alguma regularidade e a qualidade dos textos é duvidosa. Eu sei. Mas, neste momento, já perdi a vergonha e o pudor foi-se esboroando, escreves com muitos pontos finais, dizes sempre o mesmo, tens textos muito mal escritos, tem vergonha na cara e nunca publiques uma linha, porque a qualidade da tua escrita é muito idêntica à daquela senhora de quem tu não gostas nada, tem dó, há escritores, por aí, a pontapé e toda a gente quer publicar um livro, portanto, deixa-te de merdas. Tenho ouvido e lido, com muita atenção, corrijo uma ou outra palavra, chorei uma lágrima ou duas, mas cá estou. Há um ano. Parabéns, blog. Ficaremos mais um ano, mais dois, enquanto gostarmos de estar um com o outro, continuaremos por aqui. A quem não gosta do que escrevo, ou acha que só escrevo tretas e merdas, apenas, peço: não leiam, por favor, e cuidem, muito bem, da vossa vidinha. Eu vou cuidando da minha. Muito obrigada a todos os que, pelo contrário, me têm encorajado e gostam desta minha prosa tão desajeitada…Desculpem-me se vos desapontei.)

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Cry me a river




  Vistos do espaço por uma câmara caseira feita com os “desperdícios” do Leroy Merlin.

O sono e o cansaço venceram-no e o Consílio dos Deuses ficará para outro dia; entre o tema Hunting e os unregelmässige verben, o outro miúdo esqueceu-se que hoje era dia de treino; o avô faz oitenta e dois anos e os netos estão a trezentos quilómetros de distância; dizem-me que têm saudades da minha voz e eu desato num pranto; dói-me a cabeça e um buraquinho cá dentro que eu não sei explicar, onde é, senhor doutor; está muito calor, mas na minha rua as árvores torcem-se e não sossegam; algures numa rua do Porto uma doente de cancro foi “despejada à porta de uma Igreja”,(não sei se Deus irá prestar algum esclarecimento sobre este assunto); uns parvalhões que dizem que são uma espécie de governantes andam de canoa num parque de diversões e, por momentos, pensei que estava a viver na Disneyland; sento-me para escrever e o écran, (magia negra, de certeza) escureceu; não consegui entregar o IRS e vou ter de pedir ajuda ao Passos Coelho; a fofinha da Suzy foi eliminada na semifinal da Eurovisão, e a miúda é tão querida; uma advogada é esfaqueada por um marido muito queixoso, coitados dos maridos; o Senhor Putin está aberto ao diálogo, mas as tropas russas não arredam pé; o Cristiano Ronaldo está muito cansado, porque só comia carne uma vez por semana, confessou a irmã numa entrevista, corajosa a pequena; uns senhores à paisana andam, por aí, vestidos de bufos à procura de fraudes do Fisco; na Nigéria a tristeza alastra e quase duzentas raparigas continuam desaparecidas e  dói-me a cabeça, um buraquinho cá dentro que eu não sei explicar, senhor doutor. AH! Também percebi que a Parrachita afinal é muita amiga do Diogo Morgado e o Rui Unas é um filósofo; a Matilde continua presa e a Lívia Marini já sabe que a Morena está viva; a D. Bernarda transou com o Doutor Lutero e a D. Rosa conseguiu salvar o Senhor Adelino e, pronto, agora que o país está arrumado, muito limpo, e observado, lá de cima, por uma câmara sofisticada, talvez consiga ter uma boa noite de sono.

A dorzinha cá dentro, senhor doutor? Tomo um comprimido e amanhã será outro dia.


terça-feira, 6 de maio de 2014

Pensar. Impensável




289. De vez em quando o espírito retira-se-nos do corpo e deixa-nos apenas com a sua carcaça. É o ensaio para quando o deixar de vez. Retira-se e leva consigo interesses, projectos, convicções. E entusiasmos. Hábitos. Gosto pelo estudo, leituras, o simples interesse na compra de um fato novo para render o que já está no fio, uma ida ao cinema que exige sair-se de casa e do sítio em que se está acomodado, de ir dar uma volta para desentorpecer, de telefonar a alguém para apenas conversar. O computador programado e progressista diz coisas horríveis dessa apatia e vencidismo. Mas quem tem culpa disso não somo nós e é a própria vida. Ela abastece-nos do que nos é preciso quando é a hora do viver a tempo inteiro. E ela retira-nos  tudo quanto nos deu, quando é a hora de já não servirmos. Quanta coisa não utilizamos e pomos um dia de parte, quando já não tem préstimo. Uma máquina, um martelo, uma ideia. A vida serviu-se de nós para sermos em actividade útil, põe-nos de parte quando já não. Seria justo que a morte viesse interromper o que em nós fosse ainda vivente e praticável? Preparação para grande hora. É isso. Esgotar tudo o que em nós ainda houver para que reste apenas o despojo para a morte levar. De vez em quando o espírito retira-se. E é então que se torna viável ou compreensível que o destino nos retire o resto.

 

(Vergílio Ferreira, Pensar,1ªedição Quetzal 2013,pgs. 164/165)

 




domingo, 4 de maio de 2014

Para a minha mãe.





Menino De Oiro

(poema e música de Zeca Afonso)

O meu menino é d'oiro
É de oiro fino
Não façam caso que é pequenino
O meu menino é d'oiro
D'oiro fagueiro
Hei-de levá-lo no meu veleiro.

Venham aves do céu
Pousar de mansinho
Por sobre os ombros do meu menino
Do meu menino, do meu menino
Venha comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino no meu trenó.

Quantos sonhos ligeiros
pra teu sossego
Menino avaro não tenhas medo
Onde fores no teu sonho
Quero ir contigo
Menino de oiro sou teu amigo

Venham altas montanhas
Ventos do mar
Que o meu menino
Nasceu pra amar
Venha comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino no meu trenó.

O meu menino é d'oiro
É d'oiro é de oiro fino ....




(Há muitos amos, noutra tera e noutro tempo, tu cantavas-me esta canção, obrigada mamã, a poesia e a liberdade aprendem-se antes de sabermos andar.)





sexta-feira, 2 de maio de 2014

O calor a descer a avenida




 

 
 
O calor a descer a avenida.
Uma avenida a descer, os carros a apitar, o semáforo a mudar e no chão aquela névoa, indefinida, que desfaz as linhas e os ângulos  da cidade aprumada, muito quente e soalheira, a pedir sombra e fresco. Ao rio. Lá em baixo. Tranquilo. Uma faixa de um azul de muitos azuis. Sequiosa, a cidade que  pede água, uma sombra mais serena. Ao longo da avenida já balançam ancas vestidas com sedas leves, camisas brancas desengravatadas e casacos presos no polegar em gancho. O sol a mostrar-se nas lentes espelhadas, as cabeças mais pequenas protegidas - pontos azuis, amarelos, encarnados. Descem a avenida muito depressa, mais devagar, passo curto, passo mais largo. Sentam-se os rostos mais crestados, enrugados, olhares, sem viço, perdidos num qualquer horizonte, pés perdidos, cansados, braços caídos, as costas dobradas. O cansaço, o calor, a fome, parados nos bancos da avenida que desce. Ao lado, um linguajar, as palmas das mãos a alisar um mapa. À frente, no chão, um casal, ganha balanço, as mãos entrelaçadas, o desejo desenhado nos olhares que se tocam, mais um beijo e a avenida para descer. Flores nos vestidos decotados. Os homens que param, latejam-lhes as têmporas nas pregas das saias coloridas, que não lhes pertencem. Assobios, um ou outro. As árvores recortadas no céu. Uma cabeça de cavalo na nuvem mais larga, uma mão estendida, pequenina, num traço de vapor mais distante. Mais alto. Não há uma brisa, um hálito fresco de mentol, um arrepio na pele, de uma mão a acariciar um pescoço, uma ponta de ar mais fino a entrar pelo buraco da camisa. A descer a avenida. Uma voz mais irritada, um carro mais veloz. O autocarro que não parou, cabeças diferentes, muitas, anónimas a partilhar o varão metálico e a sexta-feira. Querem chegar a casa. Descem a avenida. Atravessam um largo, talvez o rio, ou uma rua. Umas escadas de madeira já gastas a deixar passar o ar quente, as baratas, o cheiro do jantar. Desço, por fim, a avenida, deixo para trás uma tarde muito quente. Fica lá atrás, apenas, mais uma tarde, muito quente. Nada muito importante, nem precioso.
Só o calor, o calor a descer a avenida.