Agarrou-se à esperança
de mais um sorriso, uma canção e um prato de tremoços comido a dois, a quatro
dedos – a casca a saltar, o fruto trincado empurrado com um golo de cerveja –
não sentiriam a chuva, viam a humidade em gotas, nos vidros, o céu a carregar-se, a
cair-lhes em cima. Passavam de um lado para o outro, encolhidas, as pessoas, as
crianças, os rapazes carregados de mochilas. Ela trincava o miolo amarelado, a
ponta dos dedos a ficar enrugada, por vezes, esquecia-se e deixava-se ficar num
olhar mais triste, um guarda-chuva mais colorido, os dedos arrefeciam, catavam
a pele e a casca mais solta. Distraída, esquecia-se. A imperial aquecia. Conseguia desenhar
os olhos, uma boca, no copo transpirado. Olhava para o copo dele. Mais vazio,
já sem espuma. Não conseguia evitar acompanhar-lhe os gestos, sentia o frio que
entrava, quando a porta da rua se abria. A pele e o sentir. Arrepiados. Talvez,
ainda, uma estrada sem chuva, sem lama, talvez, restasse o tempo de um abraço sem
cansaço, nem arrependimentos, talvez… Pensava na canção. Pensava na gargalhada e
no sol, insistia na esperança - e, se não se tivessem acabado as
palavras?! Por fim, engoliu a mágoa, um soluço, o fim, a esperança, no mesmo golo de cerveja
fresca. Os dedos finos a segurarem o copo. Como garras fortes. Tudo um tremendo equívoco, os parágrafos trocados,
o discurso reles, as imagens obscenas, a gargalhada, a boçalidade, os dias à
espera de uma resposta, um agrado. A espera. Ela à espera. Ele a falar, a
falar, a contar anedotas, a não se importar, a repetir a mesma conversa, a
insistir em histórias de conquistas, de divertimento, as imagens, as mesmas
imagens sem legendas. Feias. Sujas. Encostou, com cuidado, o copo vazio ao
pratinho das cascas, olhou para ele, encolheu os ombros, levantou-se, contou com o indicador umas moedas. No tampo da mesa,
o desenho irregular do fundo molhado dos copos. Adeus.
Sem caminho. Sim. Tinha a certeza. Deixou-o à procura do empregado, paralhe pedir mais uma. Mais uma. Como ela. Não deixara mágoa, apenas a decepção.
A desilusão, perceber outra pessoa: os sentimentos não interessavam. O homem que
não conhecia deixava aquela tristeza fininha, a rasgar a pele, a crescer dor no
seu corpo. Fininha como o frio das gotas de chuva que a surpreenderam, naquele
mês de março. Quase primavera. Desculpa,
foi sem querer.
Não tenho nada para desculpar, para perdoar, como se desculpa
uma pessoa de ser quem é?
Dizem que perdi massa
gorda, que tenho as defesas em baixo, que estou muito magrinha, que se
conseguem contar as costelas, os ossos do ombro, as pernas estão muito fininhas,
as rugas do rosto muito acentuadas e que
se não me fortalecer, em breve, uns bichinhos irão fazer das minhas forças um
belo repasto. Não costumo discutir a autoridade de quem sabe mais de matemática
do que eu, portanto, se me dizem que tenho de comer dois bifes por semana,
comerei dois bifes, por semana – coisas de médicos, manias de quem não cresceu
com a imagem da Twiggy e gosta muito de donuts. Pois, muito bem, comerei um
bife, talvez, dois. Os médicos que me desculpem, mas se na garganta não passar
mais do que duas garfadas de carne mal passada, não insistirei. Hoje, resolvi,
embrulhada numa roupa mais domingueira, aproveitando o dia de sol e a
proximidade do Tejo, ir comer um bife à beira Tejo. Convidei várias pessoas: não, hoje, é domingo, almoça-se com a
família, é dia da mulher temos de estar com o marido e os filhos, convidei a
sogra para almoçar. OH! menina um bife, hoje, à beira Tejo, com tanta obrigação
que tenho ao fim de semana?! Vai ao talho do supermercado, frita um bife, compra
umas batatinhas de pacote, liga a RFM e, pronto, comerás o teu bife, o teu
primeiro bife da semana, da tua nova dieta. Neste momento dos convites ao
telefone, enfastiada com as sogras e as obrigações de quem não arranja desculpa
melhor, parti para o rio.Uma tarde
de inverno quente, um Tejo, barcos à vela, a promessa de um futuro, assim,
transparente, brilhante e luminoso. Sentei-me na esplanada que mais gosto, o
melhor ângulo de água à minha frente e aguardei a minha vez. Esperei o bife que
me tiraria da miséria que é o meu corpo mirrado e me devolveria uma saúde de
ferro, sem ferrugem. Veio o bife, veio o copo de vinho, vieram as conversas: IRS, Passos Coelho, na minha próxima vez
deixamos os putos com a tua mãe. Então a violência doméstica está a aumentar? É
como os casais homossexuais: dantes ninguém falava no assunto e agora, até,
aparece nas telenovelas, é um sinal dos tempos desta sociedade sem valores. Ai!
Menina, experimentei um gelinho para as unhas que dura uma eternidade.
Pedrinho, ponha o guardanapo no colo para não se sujar. O bife encolhia, a minha camisa mais certinha
(afinal, eu ia comer um bife, numa esplanada!) parecia perder a graça e a garganta
fechava-se, o copo de Casa de Santar empurrava, a custo, a bola da última
dentada de bife, entretanto já tirara uma par de fotografias a um casal
alemão, a família de filhos barulhentos olhara-me com olhos de ver, para o
decote e o sol começava roçar-se nas minhascostas. O calor aumentava e a
família numerosa não me deixava sossegar. Pensei que tinha escolhido mal a
esplanada, que deveria estar a beber Coca-Cola e que comer um bife se estava a tornar
uma experiência pouco agradável: olha, a
gaja está sozinha, ocupa uma mesa de quatro lugares e tem um copo de tinto na
frente, está comemorar o dia das gajas. Sábias palavras proferidas por um
grupo de três cavalheiros, com o saco do Expresso debaixo do braço e polos Gant
coloridos. Uma gaja a ocupar uma mesa de quatro
e nós aqui em pé. A bola do bife deslizou-me pelas goelas. A Casa de
Santar e o calor da camisa de seda preta incharam-me o mau feitio e, num gesto educado
com um português muito bem articulado, interpelei os cavalheiros : Há aqui três lugares vagos, os senhores
estão de pé, está muito calor, podem sentar-se aqui, por favor, estejam à
vontade. Olharam-me com desconfiança, não deixando de fitar o botão da
minha camisa que se soltara, encolheram os ombros e com a arrogância e sobranceria
responderam: deixa estar - registei o
tratamento por tu – a nossa mesa está quase pronta. Viraram-me as costas,
soltaram uma gargalhada e - não tenho a certeza - mas ia jurar, que ainda
ouvi um olha a gaja, deve ser das tais
que anda à procura de homem, estas casas não deveriam deixar entrar toda a
gente. Não reagi - já tinha perdido o gosto, o bife estava frio e o sol
aquecia-me demasiado as costas. Pedi uma segunda taça de vinho e mergulhei no
Tejo. Por momentos, pensei que estaria no lugar errado e que o certo era ter
ficado em casa a ouvir a RFM, fritar o bifinho na frigideira, cozer
melhor os botões das camisas…breves
momentos. Aliás. A minha estreia a comer bifes em sítios públicos não foi das
mais felizes, nem muito barata e concordo em absoluto com as palavras do
cavalheiro de polo Gant azul-turquesa: estas
casas não deveriam deixar entrar toda a gente. Mas talvez seja por este
exercício gratuito de humilhação do macho colorido perante a fémea que tem o
arrojo de ir sozinha comer um bife, que o dia da mulher não pode deixar de ser
celebrado.
Quando bebi o café, uma
fila de pequenos barcos à vela, deslizava ao sabor da brisa quente e o Tejo,
prateado e orgulhoso, sem que ninguém percebesse, piscou-me o olho. Saí,
agradeci à empregada delicada que me tinha servido e comecei a pensar na
esplanada, assim que o saldo do meu cartão o permitir, onde, comerei, sozinha, o
próximo bife mal passado.
Vou muito para trás, agarro a ponta de uma nuvem que agora é
memória e vou como se não tivesse rumo, e sei tão bem, onde moras, nuvem
perdida. Vejo o perfil, os telhados recortados contra o céu. Eu já não existo
debaixo desse céu, da janela vê-se, agora, um sol rubro, vivo, diferente, outro
sol. A janela alta com a moldura de madeira que tocava aquele céu escuta,
agarra a música. Novos compassos. Outros solistas. Transparentes. Consigo vê-los. Oiço-te. Percebo pela sombra
que somos outros. Que somos de outros. Percebo que não sou eu. Já não existo. Parti.
Partimos. E, num sopro de uma nota só, deixámos de existir.
Sem mágoa, só a música me leva até à porta da tua casa que
não existe. Já não és tu. Não somos, nem diferentes.
Sem mágoa, apenas, a tua mão a agarrar a mesma nuvem que eu.
Escrevo. Respiro e oiço-te, voz. Acompanhas-me os passos, os gestos, pertences ao coro dos meus dias, vais
tecendo os teus comentários e não te coíbes de me criticar, dizes que estou no
mau caminho, que ando a dançar demais, (também bebo muito?), que combino mal os
vestidos, a pintura não condiz com a cor das meias, descuro a educação dos
miúdos e, muitas vezes, até, me acusas de me colocar em primeiro lugar, repetes
à exaustão que grito como o diabo. Dizes tu! Esta voz que me acompanha não é a
voz de um anjo da guarda, tenho de dizer-te, aliás, que, ontem tropecei nos pés, ou
numa pedra mais levantada, espalhei as fatias de fiambre e os bifes
pelo lajedo do pátio e o meu anjo da guarda - sempre ele - impediu-me de desfazer
uma dúzia de ovos, amolgar um par de óculos e o nariz. E, lá vieste tu - voz embirrante
- dizer que ando com a cabeça nas nuvens, que não sei onde ponho os pés e o blá,
blá, blá do costume. Desculpa, estou a ficar sem paciência. Ouvi dizer que há (quase)
um programa de televisão onde também aparece uma voz, assim. Irritante. Como tu.
Se insistes em dizer que durmo pouco e me alimento mal, mando-te, ‘sem dó nem
piedade’, fazer companhia à Dª Teresa Guilherme. Tens de perceber que não
ajudas nada e estás a tornar-te uma moralista irritante e beata. Percebe, lá de
uma vez por todas que tenho uma vida para viver, um caminho de pedras para
saltar, tropeçar, ou dar um pontapé. E lá estás tu… insistes na ideia absurda
de procurar alguém que me faça companhia, que me ajude a arrumar os papéis do
IRS, colocar os discos por géneros musicais, que me leve ao cinema, à praia,
essas coisas. Chega! Cala-te, tenta entender, estou bem assim e tu sabes muito
bem que as minhas lágrimas não são solidão, camas frias, ombro para descansar a
cabeça… Cala-te voz. Deixa-me em paz. As minhas lágrimas têm outra cor, outro
gosto, outro nome. E, se voltares a dizer-me que choro muito, vais de um pulo
só fazer companhia a alguém numa qualquer estação de televisão. Não tenho,
garanto-te, muitas dúvidas quanto à escolha a fazer. Ah! Agora, falas do meu
roupeiro, cheio de vestidos, camisas, sapatos, da imoralidade que é a
quantidade de lenços e écharpes que coleciono. Talvez não tenha tempo para as
usar todas, talvez, mas a tua constante insistência em chamar-me perdulária não
é muito encorajadora. Desde que me acompanhas que não oiço um elogio, uma piada
de muitas gargalhadas, um afago. Voz. Vai-te embora. Procura outra cabeça,
outra alma, outra pessoa. Alguém que ainda acredite no ‘poder da voz interior’,
na vida além da morte, no ‘poder transformador do amor’ - essas merdas todas
que me sussurras ao ouvido, quando os meus dias são mais longos, as noites sem
sono e a pensar em cigarros.
Sai da minha cabeça, voz. Sai de uma vez. Desaparece.
Não acredito nas tuas boas intenções. Procura à tua volta. Procura bem, não
faltará quem queira seguir as tuas palavras como uma bússola. Sem pisar o
risco. Eu já não te oiço: ensurdeceste a minha razão.