Volto mais
uma vez à casa…
Amêndoas,
sol de abril e sombrinhas de chocolate.
Estou no
passeio do poial da porta de madeira, as pedras estão mais brilhantes, mais
gastas: é outra rua e a casa já não existe. Páro à frente da porta que agora é
de alumínio, estico o pescoço, quero espreitar pelo postigo e ver as sombras
desenhadas nos mosaicos de xadrez. Em vão. As portas de alumínio não têm
postigos. Sobram as palavras, a memória e a luz. Ficou o sol de abril e o rio ao
fundo, a brilhar. Vou do lado de dentro do passeio, agarro com força a mão do
meu avô. Hoje vamos comprar amêndoas, um
cartucho grande de amêndoas de muitas cores. O papel pardo guardará as
cores de açúcar e o miolo da amêndoa. Não
podes comer sozinha o cartucho inteiro. Prometo que comerei, apenas, os
dedos da mão direita. Porquê os dedos da
mão direita? Porque são mais fáceis de contar. Acertamos o número de
amêndoas que cada um comerá e seguimos para o rio. Gosto daquelas tarde mornas,
da minha mão a perder-se na mão enrugada do meu avô. Afastamo-nos da casa. Vou
aos saltinhos e sei que não caio, porque a mão está bem fechada. Por nós passa
uma carroça, a mula vai sujando, sem pudor, o empedrado e eu coro, ponho a mão
na boca, abafo um sorriso, somos cúmplices, as
mulas deixam as ruas cheias de merda, arregalo os olhos para a cara do meu
avô. Rimos os dois. Na casa não se podia dizer palavrões, enchia-me de orgulho,
aquele avô malcriado, que me proibia
de dizer merda, puta e outros nomes feios,
mas dizia-os, na minha frente. Na
rua. E insistia: Nunca digas a palavra
comunista, nem a palavra fascista em voz
alta, nem em casa! Mais tarde, explicaram-me a relação entre estes palavrões e um senhor cinzento que passou,
vários dias, encostado às paredes do prédio da frente. Chegámos ao rio, os canteiros
do jardim eram da cor dos gladíolos e antes de irmos à procura das amêndoas o
meu avô ainda me pegou ao colo para eu beber água no repuxo – um arco
transparente que me estava proibido. Sabe-se
lá quem bebe aquela água? Qualquer pessoa pode pôr a boca na bica. Com o meu
avó, a merda e o chafariz pertenciam-me. Estávamos felizes: Podemos comprar uma sombrinha de chocolate,
fazer uns furinhos, pode ser que te saia outra sombrinha. A alegria de uma promessa a começar sem o indicador
atirado para a frente do: Se te portares
bem! Voltámos pela mesma rua, mas mudámos de passeio - O sol pode derreter o chocolate. E eu
sabia que, quando chegássemos a casa, despejaríamos o cartucho das amêndoas, às
cores, numa taça de loiça branca que estava guardada no armário da sala de
jantar, uma taça um pouco maior das que no mês de outubro se enchiam com
marmelada e tapavam com papel vegetal. Os passeios com o meu avô ainda existem. As taças brancas de
marmelada e amêndoas continuam guardadas no mesmo armário de portas de correr e
rede de alumínio. Desapareceram a casa, a mão a agarrar o mundo e o postigo. Mas
eu volto lá, sempre, com a boca cheia de amêndoas, nos dias mais quentes de
Abril.