Pode o Amor
ser tão cruel? I
Encontraram-se
onde, agora, as pessoas se encontram, entre um poema de Vinícius e uma canção
de Cole Porter, no espaço, ínfimo que separa um ‘like’ de um comentário de
quatro ou cinco linhas. Andaram neste namoro três, quatro semanas. Depois de
muitas trocas de imagens de filmes que lhes assegurava a cumplicidade de um
passeio à beira-mar e a cor de lingerie, passaram a ser um do outro. Um namoro
banal, quase, feliz, como os das pessoas que acreditam no amor e na comunhão de
almas tocadas pelo “que seja eterno enquanto dure”, nos sms, com as mesmas palavras, à
mesma hora. A mulher sorria, brilhava-lhe no rosto a tarde de amor, sexo e poesia trocada entre dedos, língua e pele. Tinham-se encontrado e, para
a mulher, era o início de um idílio que a levara a perdoar ao homem o hades,
o desconhecimento da música barroca e a desatenção a um dia de trabalho.
Perdoava-lhe os pecadilhos, os gestos menos delicados e o vernáculo exagerado nas
declarações de amor. Viam-se e amavam-se entre uma aula de condução do filho
mais velho, o teste de inglês do mais novo e as doenças crónicas da mãe dele. A
mulher trabalhava, organizava-lhes a felicidade, acompanhava os filhos e ansiava pelas palavras do homem no quadradinho azul do computador, abençoava
as tecnologias e a felicidade que lhe dava a partilha dos mesmos poetas e os
refrões das cantigas do Abrunhosa. Construíram um nós, passeavam na praia batida pelo vento e ousaram uma ida ao
cinema. A mulher que não acreditava no amor começava a perceber a beleza de um beijo
roubado e a segurança de um biillet doux às oito da manhã: “Os amores felizes
devem ser todos iguais como as famílias felizes de Anna Karénina”, livro que a
mulher duvidava, que o homem alguma vez tivesse lido, falha que não a
incomodava, porque aos cinquenta anos aprende-se a valorizar a força das
palavras em surdina. Assim passaram os dias, o entardecer,
os sábados à tarde, quando a ginástica das crianças não lhes tolhia o orgasmo,
ou o prazer de uma conversa mais séria. A mulher sentia-se bem com aquele homem
com um passado de aventuras, uma doença ruim, dois casamentos infelizes e a
banda sonora certa para qualquer que fosse o cenário. No início, achava-o
exagerado, provocador, atrevido, no entanto, a sua meiguice – ‘amorzinho para
cá, amorzinho para lá’ – convenceram-na, apreciava aquelas carícias, os elogios
à medida da sua cintura, ao brilho dos seus olhos. Foram-se ajeitando, sempre a
cumprir horários, sempre a obedecer. Era a vida de cada um deles, o passado que
se impunha, o dela mais comum, mais tranquilo, o dele mais carregado, mais
rendilhado: ‘não somos todos iguais e a lucidez com que educamos os filhos
depende de pessoa para pessoa’ – é a alma dos nossos negócios, como na
canção da Bethânia e do Chico. Sabiam-na de cor. E, quando se encontravam no
mesmo verso, o mundo parava, os seus olhares eram um só e a vida parecia que
não se tinha esquecido deles. Enfim,
poderia, pensava a mulher, reconciliar-se com a definição de um possível amor -
a poesia tinha uma voz e um eco na sua pele. Um mês, dois meses, organizados ao
milímetro, passaram. A mulher estava feliz, o homem também. Passavam horas a
trocar mensagens e promessas, a mulher achava graça àquele palavreado, gostava da
sua imagem ao espelho, o homem respondia-lhe com uma canção e ousava os seus dedos
na curva das suas coxas, no recorte dos seus lábios. Havia entre eles uma
afinidade de uma novela romântica e o respirar dos diálogos de Anaïs Nin. E
riam, riam muito. Dos dias de chuva, das suas aventuras de adolescentes, das
transgressões mais arrojadas, das vidas que tinham vivido. Encontravam-se à luz
do dia, mas o parque de estacionamento, à noite, com os candeeiros de lâmpadas
fundidas não lhes era indiferente. Ele estacionava o carro à beira Tejo, ou à
beira-mar do Guincho e amavam-se. Podiam ficar uma tarde inteira, duas horas,
mas nunca mais do que um intervalo, sem remorsos. ‘Coisas dele, pai extremoso’,
pensava a mulher. As horas que lhes pertenciam eram só deles e tinham a cor e o
respirar de um nós que o homem tinha
imposto. Ela sentia-se feliz. Completa. Mulher. Provocadora. Amada. ‘Bem fodida!
Queres tu dizer.’ E, riam-se, uma vez mais. Um rir e um estar que a
mulher desconhecia. ‘Beijas tão bem!’, dizia-lhe ele. Viviam aquela felicidade
única, comum para quem acredita que os minutos podem ser eternos. Poesia,
música, pele, transgressão e uma bonita história de amor - ‘ é o amor’ - que tinha passado de uma
linha virtual para uma cama num prédio das Avenidas Novas. ‘E, se fugíssemos?’
– perguntou-lhe ela, um dia, mais atrevida, mais cansada, mais ansiosa. ‘Sim. Podemos
fugir.’- respondeu-lhe ele. Combinaram uma esquina, ali, numa perpendicular à
Avenida Fontes Pereira de Melo – ‘Esperas por mim, estarei parado no sinal,
amanhã, por volta das quatro, quando me vires, vens ter comigo, depois logo se
vê…um fim-de-semana, uma noite…Se calhar, chego um pouco depois das quatro. Quando
me vires …’ Ela concordou, Sim, sim,
chegaria o seu momento. Organizou os jantares, o saco da Educação Física, as
rotinas…. Avistou a perpendicular com a Avenida Fontes Pereira de Melo , um pouco
depois das quatro, estava atrasada, viu o carro dele, parado. Avançou, o
coração a sair da boca, a correr dentro do seu corpo: ela correu também.
Atravessou a Avenida, viu-lhe o sorriso e correu, agarrou o presente que lhe
comprara e cerrou os dentes, saltou para a rua. Jogou-se nos seus
braços, não percebeu o sinal vermelho para peões, nem o Mercedes que arrancou e
a jogou para longe, para o outro lado do
passeio, como um papel amassado, jogado pela janela, sem forma e, já, sem vida. Do outro lado, na perpendicular com
a Avenida Fontes Pereira de Melo, o homem virou a chave, pôs o carro a
trabalhar, olhou para esquerda uma vez, para direita outra vez, percebeu que
ninguém o tinha visto, esperou que o sinal mudasse para avançar, sentiu, por momentos,
o sangue nas veias - ‘ Chegarei a tempo de estender a massa para a pizza, o
miúdo não precisará de ir jantar ao Mac. Ainda vou espreitar o feicebuque, pode
ser que a Ana Paula já lá esteja’. Olhou pelo retrovisor, o corpo da mulher
ainda estava estendido, desarranjado, no chão. Ao longe, ouvia a ambulância que
se aproximava. Entretanto uma pequena multidão olhava para aquele corpo sem
vida, disforme, descalço. “Está a sorrir, a mulher está a sorrir”, gritou uma voz
mais descarada. "Ainda era jovem, devia ser bonita.”
Quando a ambulância
chegou, chuviscava e a noite descia no céu frio de Dezembro.