terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pode o Amor ser tão cruel? I






Pode o Amor ser tão cruel? I


Encontraram-se onde, agora, as pessoas se encontram, entre um poema de Vinícius e uma canção de Cole Porter, no espaço, ínfimo que separa um ‘like’ de um comentário de quatro ou cinco linhas. Andaram neste namoro três, quatro semanas. Depois de muitas trocas de imagens de filmes que lhes assegurava a cumplicidade de um passeio à beira-mar e a cor de lingerie, passaram a ser um do outro. Um namoro banal, quase, feliz, como os das pessoas que acreditam no amor e na comunhão de almas tocadas pelo “que seja eterno enquanto  dure”, nos sms, com as mesmas palavras, à mesma hora. A mulher sorria, brilhava-lhe no rosto a tarde de amor, sexo e poesia trocada entre dedos, língua e pele. Tinham-se encontrado e, para a mulher, era o início de um idílio que a levara a perdoar ao homem o hades, o desconhecimento da música barroca e a desatenção a um dia de trabalho. Perdoava-lhe os pecadilhos, os gestos menos delicados e o vernáculo exagerado nas declarações de amor. Viam-se e amavam-se entre uma aula de condução do filho mais velho, o teste de inglês do mais novo e as doenças crónicas da mãe dele. A mulher trabalhava, organizava-lhes a felicidade, acompanhava os filhos e ansiava pelas palavras do homem no quadradinho azul do computador, abençoava as tecnologias e a felicidade que lhe dava a partilha dos mesmos poetas e os refrões das cantigas do Abrunhosa. Construíram um nós, passeavam na praia batida pelo vento e ousaram uma ida ao cinema. A mulher que não acreditava no amor começava a perceber a beleza de um beijo roubado e a segurança de um biillet doux às oito da manhã: “Os amores felizes devem ser todos iguais como as famílias felizes de Anna Karénina”, livro que a mulher duvidava, que o homem alguma vez tivesse lido, falha que não a incomodava, porque aos cinquenta anos aprende-se a valorizar a força das palavras em surdina. Assim passaram os dias, o entardecer, os sábados à tarde, quando a ginástica das crianças não lhes tolhia o orgasmo, ou o prazer de uma conversa mais séria. A mulher sentia-se bem com aquele homem com um passado de aventuras, uma doença ruim, dois casamentos infelizes e a banda sonora certa para qualquer que fosse o cenário. No início, achava-o exagerado, provocador, atrevido, no entanto, a sua meiguice – ‘amorzinho para cá, amorzinho para lá’ – convenceram-na, apreciava aquelas carícias, os elogios à medida da sua cintura, ao brilho dos seus olhos. Foram-se ajeitando, sempre a cumprir horários, sempre a obedecer. Era a vida de cada um deles, o passado que se impunha, o dela mais comum, mais tranquilo, o dele mais carregado, mais rendilhado: ‘não somos todos iguais e a lucidez com que educamos os filhos depende de pessoa para pessoa’ – é a alma dos nossos negócios, como na canção da Bethânia e do Chico. Sabiam-na de cor. E, quando se encontravam no mesmo verso, o mundo parava, os seus olhares eram um só e a vida parecia que não se tinha esquecido deles. Enfim, poderia, pensava a mulher, reconciliar-se com a definição de um possível amor - a poesia tinha uma voz e um eco na sua pele. Um mês, dois meses, organizados ao milímetro, passaram. A mulher estava feliz, o homem também. Passavam horas a trocar mensagens e promessas, a mulher achava graça àquele palavreado, gostava da sua imagem ao espelho, o homem respondia-lhe com uma canção e ousava os seus dedos na curva das suas coxas, no recorte dos seus lábios. Havia entre eles uma afinidade de uma novela romântica e o respirar dos diálogos de Anaïs Nin. E riam, riam muito. Dos dias de chuva, das suas aventuras de adolescentes, das transgressões mais arrojadas, das vidas que tinham vivido. Encontravam-se à luz do dia, mas o parque de estacionamento, à noite, com os candeeiros de lâmpadas fundidas não lhes era indiferente. Ele estacionava o carro à beira Tejo, ou à beira-mar do Guincho e amavam-se. Podiam ficar uma tarde inteira, duas horas, mas nunca mais do que um intervalo, sem remorsos. ‘Coisas dele, pai extremoso’, pensava a mulher. As horas que lhes pertenciam eram só deles e tinham a cor e o respirar de um nós que o homem tinha imposto. Ela sentia-se feliz. Completa. Mulher. Provocadora. Amada. ‘Bem fodida! Queres tu dizer.’ E, riam-se, uma vez mais. Um rir e um estar que a mulher desconhecia. ‘Beijas tão bem!’, dizia-lhe ele. Viviam aquela felicidade única, comum para  quem acredita que os minutos podem ser eternos. Poesia, música, pele, transgressão e uma bonita história de amor - ‘ é o amor’ - que tinha passado de uma linha virtual para uma cama num prédio das Avenidas Novas. ‘E, se fugíssemos?’ – perguntou-lhe ela, um dia, mais atrevida, mais cansada, mais ansiosa. ‘Sim. Podemos fugir.’- respondeu-lhe ele. Combinaram uma esquina, ali, numa perpendicular à Avenida Fontes Pereira de Melo – ‘Esperas por mim, estarei parado no sinal, amanhã, por volta das quatro, quando me vires, vens ter comigo, depois logo se vê…um fim-de-semana, uma noite…Se calhar, chego um pouco depois das quatro. Quando me vires …’  Ela concordou, Sim, sim, chegaria o seu momento. Organizou os jantares, o saco da Educação Física, as rotinas…. Avistou a perpendicular com a Avenida Fontes Pereira de Melo , um pouco depois das quatro, estava atrasada, viu o carro dele, parado. Avançou, o coração a sair da boca, a correr dentro do seu corpo: ela correu também. Atravessou a Avenida, viu-lhe o sorriso e correu, agarrou o presente que lhe comprara e cerrou os dentes, saltou para a rua. Jogou-se nos seus braços, não percebeu o sinal vermelho para peões, nem o Mercedes que arrancou e a jogou para longe, para o outro lado  do passeio, como um papel amassado, jogado pela janela, sem forma e, já,  sem vida. Do outro lado, na perpendicular com a Avenida Fontes Pereira de Melo, o homem virou a chave, pôs o carro a trabalhar, olhou para esquerda uma vez, para direita outra vez, percebeu que ninguém o tinha visto, esperou que o sinal mudasse para avançar, sentiu, por momentos, o sangue nas veias - ‘ Chegarei a tempo de estender a massa para a pizza, o miúdo não precisará de ir jantar ao Mac. Ainda vou espreitar o feicebuque, pode ser que a Ana Paula já lá esteja’. Olhou pelo retrovisor, o corpo da mulher ainda estava estendido, desarranjado, no chão. Ao longe, ouvia a ambulância que se aproximava. Entretanto uma pequena multidão olhava para aquele corpo sem vida, disforme, descalço. “Está a sorrir, a mulher está a sorrir”, gritou uma voz mais descarada. "Ainda era jovem, devia ser bonita.”

Quando a ambulância chegou, chuviscava e a noite descia no céu frio de Dezembro.





segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

One night stand



Mimi Tavares, One Night Stand, 2012.
 
 
 
 

One night stand

 

Estico os braços e  percebo as costas lisas, macias, largas: um homem misturou-se comigo no último cubo de gelo. O olhar. Via um par de olhos, lembrava-se dos azuis, brilhantes, a estatura, a aproximação das mãos, o ruído de  uma canção que se conhece de cor, o cigarro que caiu no chão, “tem lume?”, muito óbvia a pergunta, na noite, num refrão gasto por onde se deixa arrastar o corpo não se pensa. No óbvio. Não se pensa. Tinha os olhos abertos doridos e olhava para aquele corpo, a seu lado, semi nu. Apagam-se as palavras, amolecem  os gestos, o corpo insiste, quase se toca, pressente-se um desejo – uma solidão igual. Doía-lhe tudo, a existência, a respiração ofegante, sem nome, atravessado na sua cama desfeita, já sem penumbra. Com a dor e o que insistia em ver, em procurar, viu o apoio - um longo balcão de imagens repetidas, em frente, havia um espelho, viu os olhos brilhantes, vítreos, na sua frente. Na cabeça, ouvia o bater do seu coração, a conversa igual, a banalidade dos desabafos, as mãos dadas, sim, tinham dado as mãos, devem ter rido: o choro não traz desconhecidos para casa, a tresandar a gin. Mexia-se a custo. O desespero e uma angústia  espalhavam-se pelo corpo, na garganta seca, nem a sinceridade de um gemido, não conseguia afastar-se, endireitar-se. Sem pudor - o sol,"ajudar-me-á”. Tossiu e sentiu um golpe. As costas subiam, procuravam a almofada. O corpo de costas macias, lisas e largas mexeu-se. “Olá, tens um cigarro? ”Um indicador mostrou-lhe o chão encerado e a roupa espalhada.”Deve estar, por aí, um isqueiro”. A frase arrancada deixou um risco de enjoo. “A casa de banho?”. Com o olhar, mostrou-lhe o caminho. “É a porta pintada de azul”. Tinha frio. Cobriu-se com lençol e ajustou o corpo a procurar conforto. “Queres que te deixe o meu número de telefone?”. A cabeça, muito devagar, acenou.“Não vou precisar do número de  telefone, para nada. Despacha-te. Vai-te embora!” Cruzou os braços, viu as horas, lembrou-se de um almoço, ou seria um lanche? “Adeus, foi um prazer”. Sorriu. “Não duvido”. A cabeça ao ritmo do coração.
 
 

(Porra....ainda me dói o Francisco. Foda-se! )  



 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

 
 
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Para o F.





( um bocado de papel para reciclar)

 

Para o F.

Sou pouco dada às palavras – lia com dificuldade as letras das canções que cantarolavas – e os sentimentos não são, como sabes, matéria da minha preferência, quero, no entanto, à sombra destes dias de inquietação, dizer-te, num último parágrafo, que encontrei um par de botas pretas acima do joelho; aprendi, por fim, a fazer puré de batata e a Maria Felicidade, irmã da Sãozinha, que não chegaste a conhecer, continua desaparecida. Trivialidades. Nada disto faria muito sentido, se não tivesses encontrado debaixo da mesa que compraste na Feira da Ladra, a minha caneta de tinta permanente e uma beata fria com restos do meu baton. Vês tu?! Eu tinha razão: o amor não existe. Deixo a chave que me emprestaste – fizeste questão de dizer, várias vezes, que era emprestada! – na caixa do correio. Se, por acaso, ainda houver algum rasto meu: um cabelo, uma mancha de perfume, um botão, deita-o fora – o passado é o tempo que nos fica colado à pele, não podemos permitir que nos agarre, também, a alma. Quanto à caneta podes ficar com ela, quando a tinta secar, poderás arrumá-la no fundo de uma gaveta, ou oferecê-la a quem aprecie, ainda, um aparo a raspar o papel. A caneta é um objeto: podemos fazer com ele o que por bem entendermos, os objetos não têm remorsos.

Adeus.

Lamento as banalidades deste último parágrafo. Ou, talvez, não.

 

P.S. – Não te preocupes, não irias gostar das botas – são demasiado brilhantes – pisar-me-ias, num passo mais arrojado, ao som de uma canção de Frank Sinatra.