sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

O meu natal ou a Senhora do Chapéu.

Pintura de Sandmann Corte-Real


                                           O meu natal ou a Senhora  do Chapéu.

Venho da rua, venho do centro das luzes da confusão em sacos com embrulhos, dos flashes das selfies, dos gritos das pressas dos encontrões. Este ano não andei à procura de presentes, não organizei lista de compras, não comprei guardanapos de papel encarnados, não decorei a casa - há em cima de uma prateleira, entre dois castiçais que moram neste casa o ano todo e uma caixa chinesa, uma estrela de natal, tem umas folhas encarnadas e uma folhas verdes a quem a resiliência não assistiu e amareleceram, acabando por murchar e cair – não tenho uma árvore verde a acender e a apagar, não espalhei presentes pela casa, não expus cartões de Boas Festas  (ainda se recebem postais com sininhos e trenós?) tirando a mancha encarnada, pode dizer-se que cá em casa não entrou o natal. Estarei doida? Demente? Descrente? Indiferente? Infeliz? Farei parte daquele grupo que não festeja o natal, porque o mundo se tornou um lugar horrível e eu tenho de ser solidária e sofrer até todas as peles do polegar sangrarem? Ter-me-ei tornado uma pessoa (ainda mais) cínica? Não sei. Vivo o natal desde que respondo pelo nome que vem no Cartão de Cidadão. Ainda oiço as gargalhadas à mesa na noite da consoada. Nunca comi muito, mas ficava eufórica com a mesa a cheirar a fritos, lambia nos dedos a calda  que escorria das filhós, depenicava a posta de bacalhau e sempre me foi permitido comer - “deixem lá a miúda comer o que quiser!” - uma transparente posta de bacalhau pingada com azeite e sem couves e outras tradições. No meu natal – o que guardo e me aquece – havia tudo: árvore com bolas de vidro, luzes, presépio com musgo e a esperança de que mesmo que tivéssemos tido muitos erros no ditado ou pronunciado o“tal” nome feio, o Menino Jesus não se esqueceria do nosso sapatinho à chaminé. E se era grande a chaminé! Havia sempre o que eu tinha pedido, muitos abraços, muito colo, muito rir, muito vinho, gente, burburinho e fantasia. Durante algum tempo, fui a única menina a pôr o sapatinho à chaminé. Depois vieram outros meninos. A mesa aumentou e os preparativos começavam mais cedo, tornei-me  cúmplice da surpresa que o Menino Jesus traria para os primos, continuámos a estrear todos uma roupa melhorzinha (malditos sapatos que apertavam os pés, já, chatos, e educados pelas botas horrorosas da Lisbonense!), as mulheres iam ao cabeleireiro e na cozinha a mesa estava sempre posta. Passei um Natal num hotel em Sevilha, coisas da política que eu só percebi com 15 anos. E, mesmo já mulher independente e petulante continuei a celebrar o Natal. Atravessei várias águas para comer o peru recheado pela minha mãe e passei aos meus filhos a euforia do feliz encontro de uma família divertida, unida, comilona e muito generosa. Ensinei-lhes, sem missa do galo, que o natal era encontro, abraços apertados, surpresas e cumplicidade. E foi assim até…até há dois, três anos. O ano passado foi quase igual – quase – igual aos outros natais de gargalhadas e luzes a piscar.
Este ano despejei 8 euros na mão da florista trouxe a tal estrela para casa: “Pronto, meninos, aqui está o nosso ‘apontamento’ de Natal”, “ É de plástico?”, “Não, não é de plástico. E ficará viçosa até Junho. “ Enganei-me, mas isso também não tem importância. Este ano, teremos um natal diferente. Ou a festa será, apenas, diferente. Fui à Baixa, vi as luzes, comprei um presente e daqui a pouco vou guardar numa mala de viagem uma escova de dentes e umas camisolas quentinhas.  Vou para sul. Vou receber o meu abraço.
Não estou infeliz, não sinto o vazio de não ter natal com 20 pessoas à mesa, nem choro lágrimas saudosas e sofridas. Estou em paz. O natal mudou: morreram-me avô, avó, primos e tios, morreram-me amigos e na mesa de jantar dos meus pais mal cabem cinco pessoas. Irei à terra como tantos outros lisboetas que não nasceram na Maternidade Alfredo da Costa. Encontrarei os meus amigos. Daremos gargalhadas à beira-rio. Comeremos bacalhau, Bolo Rei, broas e chocolates. Somos poucos, por isso, em vez de peru haverá um capão recheado.
Vim da rua, dos atropelos. Na Praça de Comércio há uma árvore gigante, olhei-a de soslaio. Vinha a pensar numa miúda, muito jovem, pintora, que espalhou pela Rua do Carmo a sua arte. Comprei-lhe uma tela pequena, uma mancha de azul Klein e uma cabeça feminina com um chapéu. Chamámos-lhe A Senhora do Chapéu.  Nos momentos que conversei com ela, percebi-lhe a força e a vontade. A miúda tem um bom traço. E tem. Gostei dela e do seus dezoito anos de verdade e vaidade. (Tenho esta mania de comprar coisas na rua, quadros, fotografias, bijutaria e de ficar à conversa com quem vende o melhor que tem.)
 Chego a casa, ligo o rádio, chegam a música e as vozes preparo um Gin Tónico – em balão, como deve ser – e ponho-me a escrever. Afinal, o natal, não, não é quando um homem quiser o natal é o que um homem quiser que ele seja. Nos corações. Na esperança. 
Como poderei estar infeliz ou sentir-me sozinha?
Árvore de natal para quê? Tenho o coração quente e memórias sorridentes, sem rabanadas, nem broas. 
É a vida - a minha vida  e gosto dela assim.

(confesso que com o entusiasmo da Senhora do Chapéu, esqueci-me do gin, do gelo e da água tónica, a base do balão é uma poça de gelo derretido azul e redonda)



terça-feira, 1 de novembro de 2016

No dia dos mortos. Para a Paula B. e para a Paula Guerreiro que não tem feiecebuque

                    



https://youtu.be/Ik8ktuRwIRo



No dia dos mortos.
Quem me conhece sabe que não sou de celebrações religiosas, não vou à missa, não tenho santinhos, não guardo relíquias da Nossa Senhora de Fátima  e não entendo o significado da palavra pecado, mas entro nas Igrejas, porque - mesmo as mais 'modernaças' - são sítios lindos e muito frescos no Verão, não rezo (acho que nem sei!), e tenho uma forma particular de olhar para o Divino. Celebro o Natal, porque sempre o associo à minha infância feliz e porque a minha mãe faz o melhor perú recheado do mundo. No dia de Natal, quando estávamos todos juntos, o almoço arrastava-se para o lanche que, por sua vez, se comia à ceia e as gargalhadas eram muito melhores que as prendas que todos recebíamos, também "montava" a árvore de Natal com o meu avô, esses são os momentos que guardo com muito amor e ternura de um dos meus mortos mais queridos. Todos temos os nossos mortos, todos temos os nossos mortos mais felizes. Se, com a morte dos meus avós, aprendi o significado da palavra perda, também, foi com a morte de ambos que aprendi a respeitar e amar todos os mortos que, por mim, já passaram, estranha frase esta! Gosto de todos os "meus" que morreram. Amo a recordação que tenho deles, a felicidade que com eles vivi e aquilo que de bom me deixaram - não tenho mortos que me tenham feito mal ou não gostassem de mim e eu deles, creio que acontece o mesmo com toda a gente! Mas o que aprendi de mais completo e, por isso, tão sério e íntimo é o não temer a morte. Sou "uma temerária muito católica”, como alguém me chamou, um "não digas isso filha, que Deus castiga," ou, ainda, uma tola armada em corajosa. A ideia da morte - da minha morte - entenda-se - não me assusta. Não saber o que está além, no outro lado, ou se há Céu ou Inferno deixa-me alguma (muito pouca) ansiedade, ou melhor, uma grande curiosidade. Serei uma herege, ou uma mulher pouco inteligente, ou mais alguns epítetos, aceito-os e respeito-os todos - insultos, lamento, mas não oiço! E, diga-se, passo o cliché, tenho mais medo e respeito pela vida. E, se amanhã não acordar? Sim. É verdade, não pagarei as contas, nem corrigirei testes, mas que vida não deixo por viver? Espero acordar viva, amanhã e mais algumas madrugadas? Então, como viverei eu? Como serão os meus melhores momentos? Como conseguirei viver os mais difíceis? Que posso eu fazer, bem, com estes sóis e estas chuvas que estão para chegar? Ui! Pensando bem, este maldito hábito de pensar! É da vida, da vidinha e das outras vidas menos pindéricas que eu tenho medo. Medo, medo, não tenho.
 Tenho pavor!

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Regressso à escola

Regresso à escola, regresso aos "meus" meninos do 8ªAno.
( no 8ºAno, então quarto ano dos liceus, era tão parvinha!!!!)
A temperatura é elevada, as salas tresandam a hormonas, há 'beijinhos' e abracinhos agarrados ao meu pescoço, risadas, mãos suadas, olhos a brilhar «Tivemos saudades suas, Está tudo bem? Já se sente com força para trabalhar? A stôra não teve um cancro ou uma coisa dessas? (viva a sinceridade dos 12 anos!) Já consegue estar tão gira? Olha tem uma tatuagem! Nunca tive um stôr tatuado! Já sabíamos que era nossa stôra, sabe, nós gostamos de si, às vezes, grita um bocadinho! Nâ,nã grita nada! Nós somos bué chatos! É este ano que nos leva ao teatro? E ao cinema ? E vamos comer o gelado do ano passado? Desculpe o atraso, mas posso dar-lhe um beijinho? Vi a Stôra na praia! Vamos ler muitos livros este ano? E a gramática? Prometo, este ano, portar-me tão, tão bem,,,Prometo que não interrompo as aulas e faço os tpcs, prometo stôra, este ano sou outro Manel! Stôra, stôra, posso ser eu a sua secretária? Eu! Eu! Oh! Stõra eu tive 5! Já vai marcar os testes? Tem a certeza...» Certezas, cada vez tenho menos, e, se não fossem todas estas perguntas, o meu dia, hoje teria sido, apenas, mais um dia de trabalho. Não foi. Cada vez tenho menos certezas: não sei se a minha disciplina lhes trará alguma felicidade, não sei se os muitos noventa minutos que teremos pela frente o resto do ano serão de entusiasmo e alegria, não sei se ficarão a perceber a utilidade de um complemento oblíquo, ou se daqui a meia dúzia de anos se lembrarão das rimas cruzadas e emparelhadas, nem tão pouco se conseguirão distinguir um verbo de uma preposição. Não sei, nem sei se tudo isto terá alguma importância, não sei e passo a arrogância socrática (falo do filósofo grego, claro!), e, confesso, que, neste momento, nada disso me interessa. Hoje, foi um dia de trabalho feliz.
Amanhã, logo se vê!
(Também não me lembro de ter tido algum professor tatuado, se calhar tive, estaria escondida e talvez dissesse : Amor de Mãe. Guiné 72 e por cima, muito bem desenhada a cor de rosa e azul um rosto de mulher. Não sei! Fica a dúvida!)


sábado, 17 de setembro de 2016

Pode o Amor ser tão Cruel? V A Décima segunda carta de amor.




Pode o Amor ser tão Cruel? V




Carta de Amor número XII

Minha serenidade, minha.

 Com tranquilidade  e lucidez de  quem se diz tão inquieta, a tua carta falou-me de ti como nunca tinhas falado.
A tua carta falou de ti e de abraços.
Tens razão, estava preparado para te dar outro abraço e, talvez, outro abraço, ainda, a palavra abraço, quero eu dizer!
Não sei de mim, não sei o que quero - talvez o que não quero seja, para mim, mais sincero.
Somos construídos de sangue, de sonhos, de lágrimas e de memórias - o corpo tem memória - disse-te num dos nossos longos papéis, não concordaste: é a tua razão! Não sou assim.
Temos conversado e trocado as nossas vidas. 
Uma noite e outra e outra…
Fico inquieto.
Há dias em que estou sem ânimo.
Há dias em que penso muito em ti.
Há momentos em que não consigo explicar: o que é isto? Esta intensidade, esta emoção, este arrepio sem nome.

Sei muita coisa. Li muitos livros. Conheci muita gente e travei muitas batalhas. Viajei e perdi-me. Vim de outra cidade. Sonhos, desejo, música e mulheres sempre me acompanharam. Insaciável, sou um diletante confesso - um amante de mulheres.
Sei de cor poemas inteiros. Já te li alguns, sussurrei-tos em parágrafos curtos  para que só tu os ouvisses!
 E é isto que eu não entendo - falta-me a pele, o cheiro, o gesto das mãos, o brilho do teu sorriso. Esta distância, assim! 
(Conseguiremos viver nesta sombra?)
Este estar sem tempo são cartas que escrevemos um ao outro. Nada mais.
Tord faz-me companhia e aprendi contigo música, poemas, sentires - como vês eu não sei tudo e o que sei não me serve para nada. E sei o que me irás dizer a seguir!
Chamas-me tua serenidade e eu entendo, fico contente, é bom ouvir dizer-te isso, na tua caligrafia imperfeita a rasgar as linhas. Mas falta-me tua cintura, ou a tua presença. Mulher! Dizes que tens grilhões eu prefiro dizer laços... Vês, tu? Sou esta "coisa indefinida entre nada e coisa nenhuma", num quarto " cheio de janelas " e com um coração que é " o teu e trago dentro de mim".

Se eu quisesse ter ouvido tudo isto, seria só poesia ou desejo. Ou o gosto de ver o mar contigo. Durante horas. Mulher.
E, se nos apetecesse o silêncio!? Ou um beijo?

Continuaremos a escrever, mais logo.
Que mais poderemos fazer, minha serenidade minha?






(Nunca se encontraram e de ambos ficou apenas um amontoado de papéis a amarelecer numa gaveta sem graça e a cheirar a bafio.)




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Pensamentos profundos ou como fazer uma lista de supermercado é uma actividade muito tranquila. Com pouco vernáculo e banda sonora de outra era.





Pensamentos profundos ou como fazer uma lista de supermercado é uma actividade tranquila.
Com vernáculo, mas pouco.

( o feicebuque perguntou-me. "Em que estás a pensar?")
Estou a pensar em mil coisas, posso fazer uma lista, mas podia confundi-la com a lista das faltas e não me dá jeito nenhum trocar detergente para a loiça com emoções, estou a pensar, por exemplo que hoje é noite de lua cheia, estou a pensar que na segunda-feira conhecerei os meninos que ficarão comigo o ano todo, penso que estou a preparar um programa inteirinho de Literatura Portuguesa, penso que a partir de segunda-feira terei de anotar tudo na agenda, estou a pensar que terei de me deitar às onze da noite, estou a pensar que os livros têm de ser reorganizados, estou a pensar que verei os meus pais com menos frequência, estou a pensar num fim feliz para um conto e que eu só sei escrever "cenas assim a dar pró triste", estou a pensar que a música dos Radio Macau, que oiço neste momento, já não me faz abanar (devo estar muito crescida), estou a pensar que as minhas pernas tremerão nas primeiras aulas como sempre acontece há 35 anos (Irra, não perco o nervoso miudinho do início do ano lectivo!), estou a pensar, ainda, na conversa do Arturo Pérez-Reverte, estou a pensar que terei de tomar decisões importantes, tais como comprar uma máquina de lavar loiça ou um computador 'à maneira', estou a pensar que as trezentas e cinquenta e quatro consultas médicas que terei de marcar para mim e para os miúdos já deveriam ter sido marcadas (mãe relapsa que troca a praia pelos médicos, pois!), estou a pensar que precisarei de dias com trinta horas, estou a pensar que as minhas horas felizes de leitura e escrita terão de ser reduzidas a menos de metade, estou a pensar que o Outono está chegar (Viva o Outono!), estou a pensar em frivolidades, porque, na verdade, o que não me sai do pensamento é que o meu encantador caloiro de Direito está a partir de hoje a viver no outro lado da cidade. " Mãe, não fiques triste, a casa do pai é ao lado da minha faculdade (enfatizou a minha faculdade), e eu virei todas as semanas ao treino, aqui ao lado de casa.Então, Mãe, não me ensinaste que as asas servem para voar?!". E, agora, também fiquei a pensar: "Mãe, eu sei que tu não gostas, mas vou para as praxes". Viria a calhar, neste desabafo feicebuquiano, um verdadeiro e grande palavrão - puro vernáculo - mas eu prometi ser contida.
Vou continuar a pensar na melhor maneira de arrumar as gavetas, talvez rasgue papéis o resto da tarde. Pensamentos domésticos, sem grande metafísica!
Porra, José tens mesmo necessidade de ir às praxes???!!!!
Que coisa! Não foi para participar nestas merdas que te falei em asas e, pronto, lá se foi a contenção com o vernáculo!

domingo, 4 de setembro de 2016

Parabéns, João.







Parabéns,João.





Parabéns, João.
O João faz hoje dezoito anos. É um rapaz moreno, de pele macia e olhar muito doce. Conhecemo-nos há dezassete, dezoito anos e houve sempre ente nós uma «peculiar» forma de comunicação. Gostarmos um do outro nunca se questionou e, talvez, por termos, tantas afinidades, várias vezes discutimos até de manhã e rimos como ‘loucos’ de nós próprios. Somos os verdadeiros ‘Pides’ (já te expliquei a comparação!) um do outro, não temos um quotidiano pacífico e os nossos melhores momentos são os de sereno silêncio e os de “ Ouve lá este video do Youtube, ou vem ouvir esta banda que, desta, tu gostas!”. Vivemos bem e desfrutamos com prazer da companhia um do outro. Bem, mas atenção - não podemos ir  ao Centro Comercial, e uma ida  ao supermercado é um verdadeiro acto de amor. Tímido e envergonhado, uma das piores gaffes que cometi foi apresentar-te a alguém (não me lembro quem, não interessa!) como “Este miúdo é muito giro!”. Desculpa -me, mas, por vezes, a vaidade é um sentimento muito estúpido, (desculpas-me?). O João é das pessoas mais generosas que conheço, tem um carácter que não se encolhe perante a injustiça, nem (e, por aqui, o meu trabalho deve ter sido pouco relevante) a perfeição de uma tela de Dali ou um comportamento xenófobo. (- Sabes que essa é umas das características que mais gosto em ti? – Até perdoo, não gostares de Jazz. Dizes tu!). Tens sido um dos meus pilares, o outro chama-se José e tem 19 anos. Desculpa, se a vida tem posto tantos escolhos no nosso caminho: “No caminho tinha uma pedra /tinha uma pedra no meio do caminho[…]/ No meio do caminho tinha uma pedra[…] o poema do Drummond de que eu já te falei…adiante, desculpa se não viajamos o suficiente e se os meus gritos são a nossa principal angústia. Desculpa-me, João, mas, sabes, por aqui, por este lado, além da pessoa que sempre te ensinou a olhar para a lua ou a gostar de pintura abstacta 
( sem êxito, aliás!) está um ser como tu…como tu, não -   tu és mais bonito e mais seguro!
Mentiria, se te dissesse que te amo desde o momento em que te vi.  Tenho aprendido a amar-te! Tu tens-me ensinado a ser, todos os dias uma pessoa ‘mais pessoa’! Contigo aprendi que o Amor – o verdadeiro – entre pais e filhos, é o único que merece!
Como no poema de Sena “não sei que futuro será o vosso” ( é mais ou menos isto!). Não sei o que o futuro te trará, não sei que futuro será o teu (regresso ao Jorge de Sena, eu sei que tu sabes), mas, qualquer que ele seja, será de solidariedade, de respeito e de atenção ao teu semelhante.
Eu gostaria que continuasses assim: íntegro, verdadeiro, sensível,  justo e ainda a acreditar na condição humana.
(Desculpa, João, mas tinha de falar da tua nobreza de carácter, o facto de perderes o horário, nunca saberes quando tens teste de Português, ou se tens  trabalho de casa de Filosofia  diluem-se quando, sem dia, nem hora, me perguntas : “Estás bem, mãe?”)
Amo-te, João e de verdade!…. O nosso amor será, sempre assim, mesmo quando grito depois de 30 minutos de chuveiro ou me dizes que as "mães  não podem ter Instagram!”
Parabéns, João…Fizeste 18 anos?! Olha, ainda bem, eu estou quase a fazer sessenta! Como, tantas vezes, fazes questão de me lembrar.
Amo-te, miúdo…e isto tu nunca poderás mudar!
(Temos pena!)
Lembraste dos meus abraços, antes de adormeceres? Fica com um deles para ti! E, olha, o Urban não tem gracinha nenhuma…. Depois me dirás, se te apetecer!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Parabéns,João.





Parabéns, João.

O João faz hoje dezoito anos. É um rapaz moreno, de pele macia e olhar muito doce. Conhecemo-nos há dezassete, dezoito anos e houve sempre ente nós uma «peculiar» forma de comunicação. Gostarmos um do outro nunca se questionou e, talvez, por termos, tantas afinidades, várias vezes discutimos até de manhã e rimos como ‘loucos’ de nós próprios. Somos os verdadeiros ‘Pides’ (já te expliquei a comparação!) um do outro, não temos um quotidiano pacífico e os nossos melhores momentos são os de sereno silêncio e os de “ Ouve lá este video do Youtube, ou vem ouvir esta banda que, desta, tu gostas!”. Vivemos bem e desfrutamos com prazer da companhia um do outro. Bem, mas atenção - não podemos ir  ao Centro Comercial, e uma ida  ao supermercado é um verdadeiro acto de amor. Tímido e envergonhado, uma das piores gaffes que cometi foi apresentar-te a alguém (não me lembro quem, não interessa!) como “Este miúdo é muito giro!”. Desculpa -me, mas, por vezes, a vaidade é um sentimento muito estúpido, (desculpas-me?). O João é das pessoas mais generosas que conheço, tem um carácter que não se encolhe perante a injustiça, nem (e, por aqui, o meu trabalho deve ter sido pouco relevante) a perfeição de uma tela de Dali ou um comportamento xenófobo. (- Sabes que essa é umas das características que mais gosto em ti? – Até perdoo, não gostares de Jazz. Dizes tu!). Tens sido um dos meus pilares, o outro chama-se José e tem 19 anos. Desculpa, se a vida tem posto tantos escolhos no nosso caminho: “No caminho tinha uma pedra /tinha uma pedra no meio do caminho[…]/ No meio do caminho tinha uma pedra[…] o poema do Drummond de que eu já te falei…adiante, desculpa se não viajamos o suficiente e se os meus gritos são a nossa principal angústia. Desculpa-me, João, mas, sabes, por aqui, por este lado, além da pessoa que sempre te ensinou a olhar para a lua ou a gostar de pintura abstacta 
( sem êxito, aliás!) está um ser como tu…como tu, não -   tu és mais bonito e mais seguro!
Mentiria, se te dissesse que te amo desde o momento em que te vi.  Tenho aprendido a amar-te! Tu tens-me ensinado a ser, todos os dias uma pessoa ‘mais pessoa’! Contigo aprendi que o Amor – o verdadeiro – entre pais e filhos, é o único que merece!
Como no poema de Sena “não sei que futuro será o vosso” ( é mais ou menos isto!). Não sei o que o futuro te trará, não sei que futuro será o teu (regresso ao Jorge de Sena, eu sei que tu sabes), mas, qualquer que ele seja, será de solidariedade, de respeito e de atenção ao teu semelhante.
Eu gostaria que continuasses assim: íntegro, verdadeiro, sensível,  justo e ainda a acreditar na condição humana.
(Desculpa, João, mas tinha de falar da tua nobreza de carácter, o facto de perderes o horário, nunca saberes quando tens teste de Português, ou se tens  trabalho de casa de Filosofia  diluem-se quando, sem dia, nem hora, me perguntas : “Estás bem, mãe?”)

Amo-te, João e de verdade!…. O nosso amor será, sempre assim, mesmo quando grito depois de 30 minutos de chuveiro ou me dizes que as "mães  não podem ter Instagram!”

Parabéns, João…Fizeste 18 anos?! Olha, ainda bem, eu estou quase a fazer sessenta! Como, tantas vezes, fazes questão de me lembrar.

Amo-te, miúdo…e isto tu nunca poderás mudar!
(Temos pena!)

Lembraste dos meus abraços, antes de adormeceres? Fica com um deles para ti! E, olha, o Urban não tem gracinha nenhuma…. Depois me dirás, se te apetecer!







https://youtu.be/7pKrVB5f2W0

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Rui e eu



 (Tu gostavas muito do Jorge, lembraste? Dizias que tinham estado juntos no "exílio".)


Boas noites e um soninho descansado.


( Meu Anjo da Guarda, minha companhia /guardai a minha alma de noite e de dia.)
Todos temos os nossos mortos.
O Rui e eu.
A última vez que desci contigo as escadas do Plateau, tínhamos passado a noite a dançar, eu era uma miúda e líamos com gosto a Confissão de Lúcio, de Mário de Sá Carneiro, estou muito tranquila a falar destes nomes porque foi contigo, que mais gostei de os partilhar. Plateau e Mário de Sá Carneiro. – A que mundo pertenceríamos nós? - Esta madrugada, depois de o ter procurado, em vão, na cidade – Quem? Não sei. Percebi que nada há de mais injusto e cruel que afundarmos o nosso olhar distraído num outro olhar qualquer. As palavras valem muito pouco e é quando sentimos a neblina do Tejo, que percebemos, ali, na Vinte e Quatro de Julho, com uns vapores de gin no ar, que só precisamos das pessoas que connosco vivem um desgosto, uma alegria, um piropo. És uma miúda engraçada, dizias-me, tu, meu querido Rui. Eu acreditava. Ríamos e comíamos um cachorro quente. Discutíamos as trivialidades da vida e, se eu te dissesse que eram uns olhos azuis que me tinham deixado a pensar em pecados e afins, dir-me-ias: 
 - Faz-te ao caminho.
Mas o Rui morreu há oito anos. As vidas resistem aos impostos, aos trabalhos escassos e ruins. À doença, às injustiças, aos desamores, à solidão, resistirei a tanta saudade? O que me apetece dizer-te é: a minha avó tinha olhos azuis, e eu gostava muito dela. A cor dos olhos importa, sim. E tu sabes.
Corri a cidade. À noite, fora de horas, e não os encontrei, não vi os tais olhos azuis. Da tal criatura. Nada. A cidade estava deserta. Sem imaginação, nem fantasias Ninguém. Descobre-se um ou outro corpo colado ao ego, odiavas esta palavra, Queres em francês? Aí vai: Un seul être nous manque et  tout est depeuplé. Talvez acredite em ti, Rui. Esta noite, fizeste-me falta, sabes que, agora, não como cachorros, passo mais tempo sozinha, recomecei a escrever e não há um só dia em que não pense em ti. Estou um perigo: tive o azar de me deixar entusiasmar por um par de olhos. Não interessa a cor. Hoje, precisei das tuas certezas, porque quando me dizias que uns olhos azuis valem tanto como os olhos de outra cor qualquer, eu acreditava.
De madrugada, vinha do Tejo a neblina fria de que tu tanto gostavas, podíamos dar as mãos e rir até ao Calvário. 
Creio que a amizade é a memória das mãos de um amigo nas nossas.
 - O sexo foi bom? Eu nunca te respondia, mas tu percebias e deixavas-me em paz o tempo suficiente, para eu organizar os sentimentos, os livros, a tranquilidade, o quotidiano e a ansiedade. 
Fazes-me falta, Rui! Tanta falta!
Estás bem, aí, onde estás? E os olhos azuis que recordarei, com nostalgia, serão os da minha avó. Está prometido. Lembras-te dela? Os miúdos estão a estudar muito e para a semana, recomeçarei uma nova série de exames médicos. A camisa preta que tresanda a tabaco irá para a lavandaria. 
Nunca conheci um fumador que odiasse tanto o cheiro a tabaco... Eu deixei de fumar, como sabes. Mas o cheiro entranha-se, quando vamos aos sítios.
Deixo-te um beijo, Rui. 
Mesmo sabendo que limparás a cara com as costas das mãos.
( O Rui morreu num dia de Setembro, estava doente e eu não consegui dar-lhe um abraço, eu sei que ele não se importou, porque continuamos a conversar e a rir sempre que nos apetece.)




                                                              (quase todos os dias desde Setembro de 2008 )

domingo, 7 de agosto de 2016

Almoços de Agosto com Erik Satie

Regresso à casa.


Domingos de Agosto e vento quente.

Os domingos de Agosto a transpirar de Suão eram pouco agitados: a menina da casa, os crescidos e uma longa sesta, mas, se e o almoço trouxesse muita gente à volta da mesa rectangular, uma toalha branca, muito lisa e sem nódoas ou sombras era estendida, os pratos alinhavam-se com os copos e os talheres respeitavam o lombo assado com puré ou o peixe enrolado em papel de jornal, que tinha sido esquartejado na pia de pedra encarnada da cozinha. Em dias de maior liberdade, ou vozes mais altas eu ficava a ver a faca, o escamador e as mãos agéis arrumarem  aquele bocado de espinhas sangue e escamas  num tabuleiro de barro ou alumínio. Nos dias com muita gente, à volta da mesa, o arroz doce com canela seria aplaudido no fim do interminável almoço e eu ficaria a ver as cores desenhadas pelos copos. O sol atravessava o vidro e na toalha apareceriam círculos coloridos, copos alongados e transformados em cálices de pé alto ou pequenas manchas encarnadas - gotas desajeitadas que escorriam pelo gargalo da garrafa  mexida por uma mão mais trémula. Eu gostava de ver aquelas manchas na toalha branca: inventava uma flor, uma forma geométrica, uma história.  Uma nódoa de vinho da toalha e os meus dedos pequeninos contornavam uma história, um rosto, um desenho que nenhum dos meus lápis conseguiria contar. Os almoços de domingo eram longos de conversa. Eu não gostava de comer e as conversas não “eram contas do meu rosário”. Gostava de ver os movimentos das mãos, ouvir o tinir dos talheres no fundo dos pratos, as manchas de vinho ganharem vida -  “Esta criança não come nada. Para onde estás tu a olhar, menina?». Não saberia responder-lhes queria apenas que o almoço acabasse, queria voltar para o escritório, para dentro de um livro ou do quadro da sala de jantar.  Queria soltar-me da mesa rectangular.
Aqueles almoços eram um martírio, eu queria a praia, as ondas ou uma qualquer história que não cheirasse a carne assada ou canela. Com o calor do Suão de Agosto, a casa era o enorme corredor de ladrilhos e viagens imaginárias. Quando conseguia saltar da cadeira para o chão, corria para um ladrilho, um sitio qualquer onde ninguém conseguisse entrar.
As portadas das janelas estavam fechadas para não deixarem entrar o calor, as portas da sala grande com portas de vidro estavam  sempre abertas e era no poial de pedra dessa porta, sempre aberta, que eu também gostava de me aninhar com um livro, o bocado de um desenho ou o pedaço de céu azul que espreitava a trepadeira de espargos com bagas verdes. Corria um ar mais fresco e eu pensava que a noite demoraria a chegar, sobrar-me-ia ainda muito espaço. Atrás de mim o corredor fresco e luminoso chamava-me e as tardes de domingo com almoço e visitas perdiam importância, calor e sentido.
No entanto, ainda me lembro do cheiro a canela e das manchas do vinho tinto entornado na toalha branca. Figuras de histórias que surgem, aqui e ali, quando penso no silêncio da casa. Um silêncio diferente. Fresco. Mágico e brilhante.

(Mais tarde quando ouvi Erik Satie, pela primeira vez, pensei que talvez ele também não gostasse de almoços de domingo, ruidosos e a cheirar a canela.)


Almoços de Agosto com Erik Satie

Regresso à casa.


Domingos de Agosto e vento quente.

Os domingos de Agosto a transpirar de Suão eram pouco agitados: a menina da casa, os crescidos e uma longa sesta, mas, se e o almoço trouxesse muita gente à volta da mesa rectangular, uma toalha branca, muito lisa e sem nódoas ou sombras era estendida, os pratos alinhavam-se com os copos e os talheres respeitavam o lombo assado com puré ou o peixe enrolado em papel de jornal, que tinha sido esquartejado na pia de pedra encarnada da cozinha. Em dias de maior liberdade, ou vozes mais altas eu ficava a ver a faca, o escamador e as mãos agéis arrumarem  aquele bocado de espinhas sangue e escamas  num tabuleiro de barro ou alumínio. Nos dias com muita gente, à volta da mesa, o arroz doce com canela seria aplaudido no fim do interminável almoço e eu ficaria a ver as cores desenhadas pelos copos. O sol atravessava o vidro e na toalha apareceriam círculos coloridos, copos alongados e transformados em cálices de pé alto ou pequenas manchas encarnadas - gotas desajeitadas que escorriam pelo gargalo da garrafa  mexida por uma mão mais trémula. Eu gostava de ver aquelas manchas na toalha branca: inventava uma flor, uma forma geométrica, uma história.  Uma nódoa de vinho da toalha e os meus dedos pequeninos contornavam uma história, um rosto, um desenho que nenhum dos meus lápis conseguiria contar. Os almoços de domingo eram longos de conversa. Eu não gostava de comer e as conversas não “eram contas do meu rosário”. Gostava de ver os movimentos das mãos, ouvir o tinir dos talheres no fundo dos pratos, as manchas de vinho ganharem vida -  “Esta criança não come nada. Para onde estás tu a olhar, menina?». Não saberia responder-lhes queria apenas que o almoço acabasse, queria voltar para o escritório, para dentro de um livro ou do quadro da sala de jantar.  Queria soltar-me da mesa rectangular.
Aqueles almoços eram um martírio, eu queria a praia, as ondas ou uma qualquer história que não cheirasse a carne assada ou canela. Com o calor do Suão de Agosto, a casa era o enorme corredor de ladrilhos e viagens imaginárias. Quando conseguia saltar da cadeira para o chão, corria para um ladrilho, um sitio qualquer onde ninguém conseguisse entrar.
As portadas das janelas estavam fechadas para não deixarem entrar o calor, as portas da sala grande com portas de vidro estavam  sempre abertas e era no poial de pedra dessa porta, sempre aberta, que eu também gostava de me aninhar com um livro, o bocado de um desenho ou o pedaço de céu azul que espreitava a trepadeira de espargos com bagas verdes. Corria um ar mais fresco e eu pensava que a noite demoraria a chegar, sobrar-me-ia ainda muito espaço. Atrás de mim o corredor fresco e luminoso chamava-me e as tardes de domingo com almoço e visitas perdiam importância, calor e sentido.
No entanto, ainda me lembro do cheiro a canela e das manchas do vinho tinto entornado na toalha branca. Figuras de histórias que surgem, aqui e ali, quando penso no silêncio da casa. Um silêncio diferente. Fresco. Mágico e brilhante.

(Mais tarde quando ouvi Erik Satie, pela primeira vez, pensei que talvez ele também não gostasse de almoços de domingo, ruidosos e a cheirar a canela.)


domingo, 31 de julho de 2016

Pode o Amor ser tão Cruel IV - Está Sol no Sul. Epílogo (Sting)





Pode o Amor ser tão Cruel IV?
(sms - 1º parte)
Sms 
1ª parte
“Está sol no sul. Um bom dia para ti e abraços mais logo. Beijo.”
- Guarda essas palavras no teu coração, mana.
- Em que outro sítio as poderia guardar?
- Não sei, tu tens de passar sempre tudo a limpo, tens de organizar tudo. Só sabes sentir com a cabeça!
- Estás a exagerar, eu sou só emoção, lamechice, coração, festinhas e abraços.
- Talvez, depois de passar tudo pelo crivo do teu coração. Deixa-te ir. Arrumarás as tuas “coisinhas” amanhã.
- Não percebeste nada. Há muito tempo que não recebia um sms assim.
- E tens deixado? Por acaso, lembraste dos conselhos que me deste?
- Sou muito má conselheira!
- Não me parece. Depois de escalpelizares tudo até ao mais ínfimo pormenor, depois de “processares” tudo, como tu gostas de dizer, depois da cabeça, dizes tu, arrumada, então sim, permites algumas tréguas a ti própria.
- Oh, mana, fazes de mim um monstro.
- E não és?
- Não, não sou. Sou normal, como toda a gente: ressentida, cautelosa, tu conheces-me muito bem. Às vezes, não tens razão.
- Eu só te disse para guardares as palavras no teu coração. E que tal o sexo? Suponho que ainda gostes de sexo, não?
- Parva!
- E que tal o sexo?
- É bom. Eu gosto. Gosto das mãos, mas conheço pouco.
- Vês?! Lá estás tu! Deixa tudo acontecer, deixa fluir. Deixa a tua cabeça em paz. Gostas das mãos aproveita as mãos, sem grandes teorias.
- Se pensas que te vou contar, estás muito enganada!
- Não precisas de me contar nada! Mas se quiseres sou boa ouvinte…
- Quando passa a palma da mão….
- Ficaste com os olhos a brilhar.
- Fiquei?
- Sim. Isso é bom. Já te disse: “guarda as palavras no teu coração”.
- Achas que ando com um sorriso estúpido na cara?
- Acho!
- Nota-se assim tanto?
- Nota-se. Não te preocupes.
- Como a história do pirilampo e da cobra?
- Exatamente.
- Quem sou eu?
- Como se tu não soubesses!? És o pirilampo, mas há poucas cobras à tua volta.
- Não sei se concordo contigo.
- Há poucas cobras, porque não sabem nada do teu brilho. Não lhes digas nada, se faz favor.
- Não, só falo contigo.
- Acho bem, afinal, já sou tua amiga -irmã há muitos desgostos.
- Desgostos de ambas.
- Sim, desgostos de ambas.
- Gargalhadas?!
- Também. As nossas gargalhadas incomodam muitas cobras…
- Ui! Achas que me ajeito com esta “coisa” da escrita?
- Acho. Sempre te disse isso, mas tu és muito preguiçosa.
- Não sou nada. Tenho a lucidez de quem já leu muitos livros!
- Pois. E és professora de Literatura e ensinas gramática e blá, blá, blá….
- Tens de arriscar. Faz de conta que é assim como uma relação amorosa.
- Ai, agora estragaste tudo: o exemplo da relação amorosa não é dos melhores. Dizes que eu amo com a cabeça!
- E amas.
- Então terei de escrever com a cabeça?!
- Geralmente é aí que tudo começa.
- Perdi o fio do teu raciocínio. Em que ficamos?
-É muito simples: amas com o corpo, com o coração e escreves com a cabeça.
- E o resultado será bom?
- Isso terás de ser tu a descobrir.
- Boa. Não sei por que é que estou para aqui a conversar contigo. Tu nem sequer és grande exemplo…
- O que não me impede de dar bons conselhos.
- Pois.
- Não consegues dizer mais nada?
- Não.
- Fiquei a pensar em corações, em abraços, em pele contra pele, em beijos….
- Pronto, já aí tens muito assunto para a tua escrita.
- E que faço à cabeça?
- Dói-te?
- Não gozes.
- Não estou a gozar. Queres que volte ao pirilampo e à borboleta, ou aos riscos que TENS de correr?
- Que é que faço aos sms e às cartas de amor? Nem sei se são de amor….
- Guarda-as no teu coração e, aqui e ali, podes usá-las na tua escrita.
- E isso não é desonesto?
- Não me parece. Com é que achas que fazem todos os escritores?
- Não sei, se calhar tens razão. Ninguém sabe da nossa vida, ninguém conhece a nossa vida como nós próprios.
- Aí tens. Estás à espera….
- Não estou à espera. Procuro um fio, uma linha…
- Fio? Linha? Falamos de escrita, não falamos de arrumações, nem de listas de compras.
- Então começo a escrever e depois logo se vê?!
- É um começo…
- Queres que te leia o outro sms?
- Não, não quero, mas tu vais lê-lo na mesma.
( os sms ficaram por ali o que não a impediu de  ver o sol a sul)



Sms  - 2ª Parte
Epílogo.
- Já decidiste como vais acabar a tua história?
- Não é minha, minha…é da minha cabeça, não sei: o que penso, o que oiço, o que vejo… .É igual a tantas outras.
- Pois. Eu sei, mas os sms, as conversas ao telefone…
- Cada vez mais curtas!
- E?
- Desisti da escrita!
 - Porque deixaste de receber sms, ou porque as conversas se tornaram cada mais curtas…ou talvez o sol tenha deixado de brilhar a sul?!!
- Estou a falar a sério. Olha lá, falaste na cobra e no pirilampo, a alguém?
- Eu?! Somos amigas-irmãs….
- Pronto, não te zangues!
- Então escreve, conta isso tudo!
- Isso tudo, o quê?
- As conversas mais curtas…
 - Mais espaçadas…. poucas palavras. Não recebo sms. Não, não é verdade! Recebi um, ontem
- Conta-me, vá, diz lá! Eu ajudo-te sobre a qualidade … da escrita. Tu sabes. Tudo o que fica marcado no coração, na pele.
- Foi assim: « Sabes, ando cansado, muito cansado, tenho muito trabalho. Às vezes deixo o telemóvel no carro. Tu conheces-me!»
- Também ele?! Era um sms diferente…
- Não, estas foram as palavras dele ao telefone
- E? Mais, conta mais!
- Não me parece só curiosidade pela qualidade da minha escrita, minha  menina !
- Continua. Tens aí muito assunto, desculpa. Estás triste?
- Estou. Perdi  o coração.
- Mana, o coração não se perde: parte-se! Às vezes para, mas só às vezes!
- Mas o sms …
- O sms?
- « Está sol no sul. Um bom dia para ti e abraços mais logo. Beijo Minha doce , Susana.”
- Agora, trata-te por Susana? Tens um pseudónimo?
-  …..
- Já percebi. Está no ponto. Começa a escrever antes que te esqueças ….
- Com a cabeça? Com o coração?
- Com a mágoa . Escreve um conto. Título : Está sol no sul. Um bom dia para ti e abraços mais logo. Beijo. Gostas? Toma lá  um lenço.
- E é só?
  - Sim, primeiro escreves, depois choras dois dias seguidos.
 - E depois espero pelo próximo…
- Pelo próximo?
- Desgosto amoroso, que te parece?
- Parece-me que não te faltará assunto!
- Com amigas como tu… desculpa, era um cliché!
- E a vida é feita de quê?
- Tens razão. Não contes a ninguém a história da cobra e do pirilampo. Por Favor!
- Até à próxima mágoa, aí está uma boa linha. Um fio.
- Para quê?
- .....